E como eu fico, sem Chico nem Millôr?
Polímata é uma palavra difícil de se ouvir no dia a dia: significa o indivíduo que estuda ou domina várias ciências. Como o Brasil perdeu dois exemplos dessa espécie rara em menos de uma semana, é hora de buscar os melhores termos que o “Houaiss” e o “Aurélio” às vezes escondem do nosso cotidiano.
O adeus a Chico Anysio, aos 80 anos, foi ensaiado com um lento baixar do pano. O habitat natural do cearense de Maranguape era a televisão, de onde perdeu espaço desde 2001 por motivos alheios à sua vontade. Em retrospectiva, o humorista, ator, diretor, roteirista, compositor, comentarista de futebol, pintor e criador de 209 personagens parece-me cada vez maior, talvez o ator dos atores nacionais. Se nunca interpretou um Shakespeare na vida, é de se dizer que o azar é todo do poeta inglês. Poderia ter sido um digno rei Lear, ou uma alegríssima comadre de Windsor, com trejeitos combinados de Salomé e Neide Taubaté.
Ao menos o Brasil deu ao velho William a sorte de ser traduzido por Millôr Fernandes, 87, que também foi poeta, dramaturgo, aforista, jornalista, ilustrador, inventor do frescobol e humorista fundador do lendário “O Pasquim”.
Dois intelectuais à brasileira. Duas almas enciclopédicas gestadas no século 20, que entenderam que seus papéis seriam mais bem desempenhados se espalhassem inteligência através do humor, em vez de preferir o caminho digno – porém mais restrito – do texto sério.
Chico alertou-nos em relação aos pastores centavistas (Tim Tones), aos políticos com horror a pobres (Justo Veríssimo), ao ridículo de ter que disfarçar uma homossexualidade à força (Haroldo) e, sobretudo, à necessidade de rir. “O humor deveria ser obrigatório”, afirmou certa vez em entrevista. Sátira e malícia de massas, para que o Brasil entendesse a si mesmo.
Já Millôr ensinou que a sabedoria não precisa ser palavrosa ou empolada – bem diferente do que políticos e juízes tentaram nos fazer crer. Criou teses arrebatadoras em frases curtíssimas, que revelavam verdades brilhantes e críticas astutas. É o brasileiro mais citável de todos os tempos, pau a pau com Nelson Rodrigues. Um exemplo? “Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos bem.”
Duas obras múltiplas, imensas, de quando o humor podia ser interpretado às gargalhadas, sem custas de protestos, debates e processos.
Márvio dos Anjos? Editor e colunista das sextas do jornal Destak, colunista Infiltrado do blog Maria Filó (www.mariafilo.com.br/blog), vocalista do CABARET (www.myspace.com/radiocabaret), poeta.
29.3.12
22.3.12
Um pacto entre o acaso e o destino
Nesta última semana, o assunto que mais me chamou a atenção foi a morte de um papa. Shenouda 3º era o líder da Igreja Ortodoxa Copta desde 1971; morreu no sábado, aos 88 anos. “Copta” é a palavra grega para “egípcio”, nacionalidade de mais da metade dos seguidores do pontífice, estimados entre 10 milhões e 20 milhões em todo o globo.
Mais impressionante ainda me foi como eles decidem quem o sucederá. Diferentemente do conclave católico – brilhantemente retratado pelo italiano Nanni Moretti no filme em cartaz “Habemus Papam” –, que dura poucos dias e aponta um vencedor após debates e votações dos cardeais, a eleição copta pode se alongarr meses. Os líderes da religião apontam três bispos, cujos nomes são escritos em papéis que serão reunidos numa urna.
O toque mágico da decisão é um sorteio executado por um menino que, de olhos vendados e “a mão guiada por Deus” (segundo a crença ortodoxa copta), escolhe o papel com o nome do vencedor. Assim Shenouda 3º foi alçado a um pontificado de 40 anos e 4 meses.
Acaso ou destino, é belíssimo que, mesmo após toda a política que indica a lista tríplice, a Igreja Copta aceite que os anseios e ambições de bispos racionais devam dar espaço ao imprevisível. Suponho que, neste sorteio sem manipulações, a “escolha de Deus” se legitime para eles, depois que os homens tenham feito as suas.
Só que os coptas têm todos os motivos para não confiar demais na sorte. Desde que a Primavera Árabe irrompeu em 2011, integrar a minoria cristã de um país muçulmano tornou-se ainda mais difícil. A ascensão de um partido islâmico no Parlamento egípicio piora ainda mais as coisas.
Ser um papa copta, como Shenouda foi, é agir diplomaticamente, guiando a religião mas sobretudo protegendo a faixa marginalizada do povo. Atentados e assassinatos de cristãos egípcios são denunciados mês a mês pelas agências de notícias que cobrem o país.
Mas a tradição manda, e Shenouda 3º será substituído em sorteio. Assim os coptas ensinam que, por piores que sejam os tempos, a ilusão de tentar controlar tudo é um mal ainda maior que deve ser evitado. Haverá otimismo quando a inocência da criança mediar o ‘pacto’ entre o planejado e o aleatório – isso que todos somos, dia a dia, quase sem notar.
Nesta última semana, o assunto que mais me chamou a atenção foi a morte de um papa. Shenouda 3º era o líder da Igreja Ortodoxa Copta desde 1971; morreu no sábado, aos 88 anos. “Copta” é a palavra grega para “egípcio”, nacionalidade de mais da metade dos seguidores do pontífice, estimados entre 10 milhões e 20 milhões em todo o globo.
Mais impressionante ainda me foi como eles decidem quem o sucederá. Diferentemente do conclave católico – brilhantemente retratado pelo italiano Nanni Moretti no filme em cartaz “Habemus Papam” –, que dura poucos dias e aponta um vencedor após debates e votações dos cardeais, a eleição copta pode se alongarr meses. Os líderes da religião apontam três bispos, cujos nomes são escritos em papéis que serão reunidos numa urna.
O toque mágico da decisão é um sorteio executado por um menino que, de olhos vendados e “a mão guiada por Deus” (segundo a crença ortodoxa copta), escolhe o papel com o nome do vencedor. Assim Shenouda 3º foi alçado a um pontificado de 40 anos e 4 meses.
Acaso ou destino, é belíssimo que, mesmo após toda a política que indica a lista tríplice, a Igreja Copta aceite que os anseios e ambições de bispos racionais devam dar espaço ao imprevisível. Suponho que, neste sorteio sem manipulações, a “escolha de Deus” se legitime para eles, depois que os homens tenham feito as suas.
Só que os coptas têm todos os motivos para não confiar demais na sorte. Desde que a Primavera Árabe irrompeu em 2011, integrar a minoria cristã de um país muçulmano tornou-se ainda mais difícil. A ascensão de um partido islâmico no Parlamento egípicio piora ainda mais as coisas.
Ser um papa copta, como Shenouda foi, é agir diplomaticamente, guiando a religião mas sobretudo protegendo a faixa marginalizada do povo. Atentados e assassinatos de cristãos egípcios são denunciados mês a mês pelas agências de notícias que cobrem o país.
Mas a tradição manda, e Shenouda 3º será substituído em sorteio. Assim os coptas ensinam que, por piores que sejam os tempos, a ilusão de tentar controlar tudo é um mal ainda maior que deve ser evitado. Haverá otimismo quando a inocência da criança mediar o ‘pacto’ entre o planejado e o aleatório – isso que todos somos, dia a dia, quase sem notar.
8.3.12
Às mulheres, uma felicidade sem dívidas com o passado
O Dia Internacional da Mulher costuma ser um debate. Enquanto umas se envaidecem por serem elogiadas, parabenizadas ou presenteadas, muitas não entendem qual é o ponto de haver um dia que festeje alguém pelo fato de, na concepção, ter recebido um cromossomo X a mais. De fato, por que ser parabenizada por algo que não se pôde escolher? Não faltam mulheres que se queixam desses cumprimentos, por verem um paternalismo embutido e da condescendência com segundas intenções.
De fato, é mais um convite à memória do que à festa. Memória das épocas em que a condição da mulher era ditada por uma série de convenções culturais, muitas com base em ortodoxia religiosa, outras em machismo. Quem vê hoje a mulher chefiar lares, trabalhar em cargos executivos e presidir países de dimensões continentais pode, muitas vezes, se esquecer de que são escolhas e conquistas relativamente recentes. Há algumas décadas, nem havia escolhas.
Mas todas as mudanças acabam tendo lados ruins, e hoje o que mais me chama a atenção é que, ao reverterem a tirania dos homens, as mulheres caíram numa tirania das próprias mulheres, em altos debates sobre a condição feminina, o que lhe seria obrigatório ou não. Ditames criados pelas próprias mulheres, por aversão a velhos conceitos que não necessariamente são condenáveis ou prejudiciais.
Noto que há mulheres que nitidamente adiam os sonhos que têm sobre casamento e da gravidez como se devessem compensar as frustrações profissionais das antepassadas. Têm medo de casar cedo e “não aproveitar” a juventude com mais parceiros e menos dependentes, além de “empacarem” suas carreiras. É curioso que muitas não reparem que “casar cedo”, numa sociedade como a nossa, também pode significar voltar a ser solteira cedo.
Uma mulher que se casa e tem filho aos 25 anos pode, segundo a média aferida pelo IBGE, se divorciar 10 anos depois. Estará com 35 anos (para nossos parâmetros, ainda é uma mulher extremamente jovem e interessante), com mais dinheiro para se divertir e poderia até curtir “uma segunda adolescência”. Se o casamento durar mais, por que não?, tanto melhor.
Se me permitem, desejo que vocês possam escolher cada vez mais por suas individualidades, sem débitos com ideologias, e se tornem felizes de acordo com o que queiram sonhar.
O Dia Internacional da Mulher costuma ser um debate. Enquanto umas se envaidecem por serem elogiadas, parabenizadas ou presenteadas, muitas não entendem qual é o ponto de haver um dia que festeje alguém pelo fato de, na concepção, ter recebido um cromossomo X a mais. De fato, por que ser parabenizada por algo que não se pôde escolher? Não faltam mulheres que se queixam desses cumprimentos, por verem um paternalismo embutido e da condescendência com segundas intenções.
De fato, é mais um convite à memória do que à festa. Memória das épocas em que a condição da mulher era ditada por uma série de convenções culturais, muitas com base em ortodoxia religiosa, outras em machismo. Quem vê hoje a mulher chefiar lares, trabalhar em cargos executivos e presidir países de dimensões continentais pode, muitas vezes, se esquecer de que são escolhas e conquistas relativamente recentes. Há algumas décadas, nem havia escolhas.
Mas todas as mudanças acabam tendo lados ruins, e hoje o que mais me chama a atenção é que, ao reverterem a tirania dos homens, as mulheres caíram numa tirania das próprias mulheres, em altos debates sobre a condição feminina, o que lhe seria obrigatório ou não. Ditames criados pelas próprias mulheres, por aversão a velhos conceitos que não necessariamente são condenáveis ou prejudiciais.
Noto que há mulheres que nitidamente adiam os sonhos que têm sobre casamento e da gravidez como se devessem compensar as frustrações profissionais das antepassadas. Têm medo de casar cedo e “não aproveitar” a juventude com mais parceiros e menos dependentes, além de “empacarem” suas carreiras. É curioso que muitas não reparem que “casar cedo”, numa sociedade como a nossa, também pode significar voltar a ser solteira cedo.
Uma mulher que se casa e tem filho aos 25 anos pode, segundo a média aferida pelo IBGE, se divorciar 10 anos depois. Estará com 35 anos (para nossos parâmetros, ainda é uma mulher extremamente jovem e interessante), com mais dinheiro para se divertir e poderia até curtir “uma segunda adolescência”. Se o casamento durar mais, por que não?, tanto melhor.
Se me permitem, desejo que vocês possam escolher cada vez mais por suas individualidades, sem débitos com ideologias, e se tornem felizes de acordo com o que queiram sonhar.
1.3.12
Aos evangélicos eleitores em 2012
A nossa política é apartidária. Significa dizer que os partidos não interessam como blocos ideológicos, comprometidos com orientações políticias coerentes. Eles negociam entre si as melhores oportunidades de se sustentar dentro dos projetos de poder em voga.
Se isso não tinha ficado claro com o PT de Fernando Haddad e o PSDB de José Serra disputando a mão do PSD de Kassab – que já mostra toda uma vocação de “legenda para simbioses”, já consagrada pelo PMDB –, eis que Dilma nos apresenta o senador Marcelo Crivella, do PRB, como novo ministro da Pesca e Aquicultura. A intenção não é melhorar o setor pesqueiro, mas atrair o voto evangélico, principalmente para a eleição em São Paulo.
Segundo o censo do IBGE, 20% da população brasileira é evangélica. Talvez seja o bloco mais uníssono nas urnas: dependendo de como se manifeste em relação a temas delicados (por exemplo, aborto e direitos dos homossexuais), o candidato é ou não aprovado em massa.
É de se perguntar se o evangélico não repara que é usado para o fisiologismo de seus “representantes”, como o licenciado bispo Crivella. Ou se não percebe que certas questões são levantadas só porque são pontos-chaves da fé, ainda que não tenham relação com a eleição em si.
Dou exemplo: nesta semana, o ex-ministro Fernando Haddad, pré-candidato do PT à prefeitura de São Paulo, foi questionado sobre sua posição sobre o aborto e se disse contra. A verdade é que pouco interessa a opinião do candidato sobre esse tópico, porque um prefeito não tem como legalizar o aborto em sua própria cidade. Isso só se faz nacionalmente. Neste ano, interessam ideias sobre outros temas:
Se o transporte público da casa ao trabalho é confortável, rápido e barato. Se seu bairro é iluminado e limpo. Se a varrição e a coleta de lixo funcionam bem. Se o trânsito é pensado de forma a ter menos engarrafamentos. Se há planos para evitar enchentes, com limpeza de esgotos e rios. Se o mobiliário urbano de praças e parques está bem cuidado. Se o ensino municipal avançou. Se os hospitais municipais melhoraram; numa emergência, até conveniados dependem do atendimento deles.
Olhe em volta, leitor, e não caia de boa fé em armadilhas. Em 2012, você vota por onde anda.
A nossa política é apartidária. Significa dizer que os partidos não interessam como blocos ideológicos, comprometidos com orientações políticias coerentes. Eles negociam entre si as melhores oportunidades de se sustentar dentro dos projetos de poder em voga.
Se isso não tinha ficado claro com o PT de Fernando Haddad e o PSDB de José Serra disputando a mão do PSD de Kassab – que já mostra toda uma vocação de “legenda para simbioses”, já consagrada pelo PMDB –, eis que Dilma nos apresenta o senador Marcelo Crivella, do PRB, como novo ministro da Pesca e Aquicultura. A intenção não é melhorar o setor pesqueiro, mas atrair o voto evangélico, principalmente para a eleição em São Paulo.
Segundo o censo do IBGE, 20% da população brasileira é evangélica. Talvez seja o bloco mais uníssono nas urnas: dependendo de como se manifeste em relação a temas delicados (por exemplo, aborto e direitos dos homossexuais), o candidato é ou não aprovado em massa.
É de se perguntar se o evangélico não repara que é usado para o fisiologismo de seus “representantes”, como o licenciado bispo Crivella. Ou se não percebe que certas questões são levantadas só porque são pontos-chaves da fé, ainda que não tenham relação com a eleição em si.
Dou exemplo: nesta semana, o ex-ministro Fernando Haddad, pré-candidato do PT à prefeitura de São Paulo, foi questionado sobre sua posição sobre o aborto e se disse contra. A verdade é que pouco interessa a opinião do candidato sobre esse tópico, porque um prefeito não tem como legalizar o aborto em sua própria cidade. Isso só se faz nacionalmente. Neste ano, interessam ideias sobre outros temas:
Se o transporte público da casa ao trabalho é confortável, rápido e barato. Se seu bairro é iluminado e limpo. Se a varrição e a coleta de lixo funcionam bem. Se o trânsito é pensado de forma a ter menos engarrafamentos. Se há planos para evitar enchentes, com limpeza de esgotos e rios. Se o mobiliário urbano de praças e parques está bem cuidado. Se o ensino municipal avançou. Se os hospitais municipais melhoraram; numa emergência, até conveniados dependem do atendimento deles.
Olhe em volta, leitor, e não caia de boa fé em armadilhas. Em 2012, você vota por onde anda.
23.2.12
ENTREGA DE ESCOLAS, APURAÇÃO DO OSCAR
Tão logo acaba a apuração dos desfiles das Escolas de Samba, vamos nós para a grande apuração do cinema. E eu pensava, ao ouvir as notas da Sapucaí, como seria interessante se a Academia de Hollywood decidisse adotar nossa fórmula de premiações.
Saímos do salão de convenções, entramos numa praça aberta, com um sol tórrido, e vemos astros e estrelas do cinema mundial se abanando, com papel e caneta na mão, maquiagens derretendo, óculos escuros dos mais variados designs, e toda aquela vontade de levar a estatueta – que seria apenas uma, que premiaria a produção campeã.
Basta de discursos longos e de números musicais malas. Chega de sorrisos forçados só para manter a noblesse oblige. As 20 melhores produções receberiam notas distribuídas por quesitos, todos eles cantados por Billy Crystal, microfone com fio em punho, atrás dos indefectíveis logos dos patrocinadores – cervejarias e a prefeitura de Los Angeles em destaque.
Seria lindo ver Martin Scorsese e Clint Eastwood, cada um em sua mesinha de plástico, papel e caneta na mão, ladeados por seus produtores associados encabeçando bonés, e reclamando em voz alta: “COMO ASSIM 9,2 EM ROTEIRO ORIGINAL?”
Enquanto isso, as entrevistas com os atores e atrizes, eles de regata, elas de shortinho. Meryl Streep falando da emoção de defender os estúdios XYZ, que entrou em cena com muita garra defendendo as cores da “Dama de Ferro” e mandando aquele abraço para o pessoal de Nova York. Leonardo DiCaprio, ignorado por “J. Edgar”, seria tirado à força com sua galera, acusando a Academia de se curvar às francesices de Jean Dujardin em o “Artista”. (Aliás, neste ano, não sei se você sabe, mas “A Árvore da Vida” vai levar 10 no quesito Evolução. Dizem que as notas já vazaram)
Não iam faltar acusações de roubalheira. Woody Allen, com sua habitual ironia, diria que os jurados americanos não o entendem como os europeus, enquanto Steven Spielberg seria sempre acusado de engessar os longas com apuro técnico frio e calculista, além de contar com o lobby que favorece o jogo de bichos como “Cavalo de Guerra”.
Enfim, não sei se conseguiríamos exportar nossas fórmulas. Mas é preciso evitar que, pelo menos em São Paulo, o desfile abandone a fórmula dos pontos corridos e chegue no mata-mata.
Tão logo acaba a apuração dos desfiles das Escolas de Samba, vamos nós para a grande apuração do cinema. E eu pensava, ao ouvir as notas da Sapucaí, como seria interessante se a Academia de Hollywood decidisse adotar nossa fórmula de premiações.
Saímos do salão de convenções, entramos numa praça aberta, com um sol tórrido, e vemos astros e estrelas do cinema mundial se abanando, com papel e caneta na mão, maquiagens derretendo, óculos escuros dos mais variados designs, e toda aquela vontade de levar a estatueta – que seria apenas uma, que premiaria a produção campeã.
Basta de discursos longos e de números musicais malas. Chega de sorrisos forçados só para manter a noblesse oblige. As 20 melhores produções receberiam notas distribuídas por quesitos, todos eles cantados por Billy Crystal, microfone com fio em punho, atrás dos indefectíveis logos dos patrocinadores – cervejarias e a prefeitura de Los Angeles em destaque.
Seria lindo ver Martin Scorsese e Clint Eastwood, cada um em sua mesinha de plástico, papel e caneta na mão, ladeados por seus produtores associados encabeçando bonés, e reclamando em voz alta: “COMO ASSIM 9,2 EM ROTEIRO ORIGINAL?”
Enquanto isso, as entrevistas com os atores e atrizes, eles de regata, elas de shortinho. Meryl Streep falando da emoção de defender os estúdios XYZ, que entrou em cena com muita garra defendendo as cores da “Dama de Ferro” e mandando aquele abraço para o pessoal de Nova York. Leonardo DiCaprio, ignorado por “J. Edgar”, seria tirado à força com sua galera, acusando a Academia de se curvar às francesices de Jean Dujardin em o “Artista”. (Aliás, neste ano, não sei se você sabe, mas “A Árvore da Vida” vai levar 10 no quesito Evolução. Dizem que as notas já vazaram)
Não iam faltar acusações de roubalheira. Woody Allen, com sua habitual ironia, diria que os jurados americanos não o entendem como os europeus, enquanto Steven Spielberg seria sempre acusado de engessar os longas com apuro técnico frio e calculista, além de contar com o lobby que favorece o jogo de bichos como “Cavalo de Guerra”.
Enfim, não sei se conseguiríamos exportar nossas fórmulas. Mas é preciso evitar que, pelo menos em São Paulo, o desfile abandone a fórmula dos pontos corridos e chegue no mata-mata.
10.2.12
A chantagem de farda será anual?
Policiais militares e bombeiros não ganham à altura do risco que correm. Disso ninguém discorda, e sabemos muito bem que isso é fruto de décadas de prioridades equivocadas. Já comecemos então duvidando das "preocupações sociais" de qualquer governo que não remunera bem os seus cidadãos armados e fardados que são constitucionalmente proibidos de fazer greve.
Porque, sim, esta é outra verdade: bombeiros e policiais militares não podem fazer greve. Não podem se amotinar, nem podem ocupar quartéis (como fizeram os bombeiros do Rio no ano passado) ou edifícios do Legislativo (como fazem os policiais militares na Bahia). Suas paralisações são terrorismo com a população.
É claro que os militares estaduais são seres humanos com direitos à liberdade de expressão, mas suas funções estão a serviço da segurança pública, suas obrigações com hierarquia e disciplina estão embutidas na sua missão, que é defender os civis e fiscalizar as leis. Está evidente desde o momento em que prestam o concurso, e não há pensamento liberal-esquerdista sério que imagine um Estado brasileiro sendo governado sem polícia.
É até bonito quando partidos que estimularam greves de militares no passado (como o PT de Jaques Wagner, que apoiou greve baiana em 2001) decidem abraçar a Constituição. Sinal de que nem sempre o poder só corrompe.
Dilma, que também é PT, está certa quando diz que não pode haver anistia aos rebeldes da Bahia. O raciocínio é simples: se forem anistiados, repetirão no próximo ano a mesma quebra de comando, a omissão de serviço e a mesma afronta à ordem pública que deveriam defender. O produto disso é uma chantagem anual e inconstitucional sempre perto do Carnaval - e por favor, perdoem-me as rimas.
Por fim, é imoral que eleitos pelo povo apoiem esse terrorismo. A deputada estadual Janira Rocha (PSOL-RJ), que foi flagrada aconselhando a articulação nacional do movimento grevista em gravações com o cabo bombeiro do Rio Benevenuto Daciolo, dá mostras de que não tem mínimas condições de legislar. Já morreram mais de 140 pessoas na Grande Salvador durante a greve da Bahia. Por mais que mereçam aumento, não é com conivência com a desordem pública e omissão criminosa que as forças responsáveis pelo bem-estar dos cidadãos vão justificá-lo
Policiais militares e bombeiros não ganham à altura do risco que correm. Disso ninguém discorda, e sabemos muito bem que isso é fruto de décadas de prioridades equivocadas. Já comecemos então duvidando das "preocupações sociais" de qualquer governo que não remunera bem os seus cidadãos armados e fardados que são constitucionalmente proibidos de fazer greve.
Porque, sim, esta é outra verdade: bombeiros e policiais militares não podem fazer greve. Não podem se amotinar, nem podem ocupar quartéis (como fizeram os bombeiros do Rio no ano passado) ou edifícios do Legislativo (como fazem os policiais militares na Bahia). Suas paralisações são terrorismo com a população.
É claro que os militares estaduais são seres humanos com direitos à liberdade de expressão, mas suas funções estão a serviço da segurança pública, suas obrigações com hierarquia e disciplina estão embutidas na sua missão, que é defender os civis e fiscalizar as leis. Está evidente desde o momento em que prestam o concurso, e não há pensamento liberal-esquerdista sério que imagine um Estado brasileiro sendo governado sem polícia.
É até bonito quando partidos que estimularam greves de militares no passado (como o PT de Jaques Wagner, que apoiou greve baiana em 2001) decidem abraçar a Constituição. Sinal de que nem sempre o poder só corrompe.
Dilma, que também é PT, está certa quando diz que não pode haver anistia aos rebeldes da Bahia. O raciocínio é simples: se forem anistiados, repetirão no próximo ano a mesma quebra de comando, a omissão de serviço e a mesma afronta à ordem pública que deveriam defender. O produto disso é uma chantagem anual e inconstitucional sempre perto do Carnaval - e por favor, perdoem-me as rimas.
Por fim, é imoral que eleitos pelo povo apoiem esse terrorismo. A deputada estadual Janira Rocha (PSOL-RJ), que foi flagrada aconselhando a articulação nacional do movimento grevista em gravações com o cabo bombeiro do Rio Benevenuto Daciolo, dá mostras de que não tem mínimas condições de legislar. Já morreram mais de 140 pessoas na Grande Salvador durante a greve da Bahia. Por mais que mereçam aumento, não é com conivência com a desordem pública e omissão criminosa que as forças responsáveis pelo bem-estar dos cidadãos vão justificá-lo
26.1.12
RIO, CAPITAL MUNDIAL DO TERRORISMO ACIDENTAL
A culpa ainda não sabemos de quem é. Mas, quando um edifício de 20 andares desaba e leva outros dois consigo, além de um número ainda indeterminados de vítimas, é de se perguntar o que faz do Rio uma cidade tão repleta de atentados espontâneos.
Sim, amigo, é absurdo que um edifício desabe, como se tivesse sido alvo de um avião pilotado por terroristas. Assim como no ano passado era absurdo que tampas de bueiros voassem como minas terrestres, ou que um restaurante explodisse como se tivesse sido visitado por um homem-bomba. Tudo isso acontece no Rio com frequência extremamente incômoda – percebam que eu só observei os últimos dois anos.
Como nenhum grupo fundamentalista jamais clamou para si a autoria desses eventos, todos dignos de uma Al-Qaeda, podemos realmente decretar que o Rio é a capital mundial do terrorismo acidental.
Na Cidade Maravilhosa, os acidentes causados por imperícia, imprudência e negligência são do tipo que grupos paramilitares levam anos para planejar minuciosamente.
Repito: ainda não sabemos o que aconteceu no edifício Liberdade. Mas já soa trágico que todas as hipóteses plausíveis apontem ou para o amadorismo canhestro com um toque de corrupção – já que envolvem a retirada de uma viga de sustentação ou excesso de entulho, em uma obra que não tinha licença para ser executada – ou para má conservação com possíveis infiltrações na laje, ou o uso clandestino de gás (esta última tese parece ser a mais afastada).
É um pouco frustrante que em nenhum momento possamos cogitar algo como terrorismo. Faria mais sentido se fossem criminosos o desabamento na Treze de Maio, a detonação de bueiros das empresas de luz e gás e mesmo a explosão do restaurante Filé Carioca na Praça Tiradentes, em outubro passado. E ainda me lembram, sim, do descarrilamento do bondinho de Santa Teresa.
Na impossibilidade de culpar algum imitador do falecido Osama bin Laden, vamos ter que lidar com mais um sintoma grosseiro de irresponsabilidade e ilegalidade, tumores sociais a que a população carioca está tão perigosamente habituada, enterrar os mortos e consolar as viúvas e os órfãos feitos pelo absurdo.
E dizer-lhes, entre as condolências, que infelizmente essas coisas “acontecem”. Que foi sem querer. Ou que foi Deus que quis assim.
A culpa ainda não sabemos de quem é. Mas, quando um edifício de 20 andares desaba e leva outros dois consigo, além de um número ainda indeterminados de vítimas, é de se perguntar o que faz do Rio uma cidade tão repleta de atentados espontâneos.
Sim, amigo, é absurdo que um edifício desabe, como se tivesse sido alvo de um avião pilotado por terroristas. Assim como no ano passado era absurdo que tampas de bueiros voassem como minas terrestres, ou que um restaurante explodisse como se tivesse sido visitado por um homem-bomba. Tudo isso acontece no Rio com frequência extremamente incômoda – percebam que eu só observei os últimos dois anos.
Como nenhum grupo fundamentalista jamais clamou para si a autoria desses eventos, todos dignos de uma Al-Qaeda, podemos realmente decretar que o Rio é a capital mundial do terrorismo acidental.
Na Cidade Maravilhosa, os acidentes causados por imperícia, imprudência e negligência são do tipo que grupos paramilitares levam anos para planejar minuciosamente.
Repito: ainda não sabemos o que aconteceu no edifício Liberdade. Mas já soa trágico que todas as hipóteses plausíveis apontem ou para o amadorismo canhestro com um toque de corrupção – já que envolvem a retirada de uma viga de sustentação ou excesso de entulho, em uma obra que não tinha licença para ser executada – ou para má conservação com possíveis infiltrações na laje, ou o uso clandestino de gás (esta última tese parece ser a mais afastada).
É um pouco frustrante que em nenhum momento possamos cogitar algo como terrorismo. Faria mais sentido se fossem criminosos o desabamento na Treze de Maio, a detonação de bueiros das empresas de luz e gás e mesmo a explosão do restaurante Filé Carioca na Praça Tiradentes, em outubro passado. E ainda me lembram, sim, do descarrilamento do bondinho de Santa Teresa.
Na impossibilidade de culpar algum imitador do falecido Osama bin Laden, vamos ter que lidar com mais um sintoma grosseiro de irresponsabilidade e ilegalidade, tumores sociais a que a população carioca está tão perigosamente habituada, enterrar os mortos e consolar as viúvas e os órfãos feitos pelo absurdo.
E dizer-lhes, entre as condolências, que infelizmente essas coisas “acontecem”. Que foi sem querer. Ou que foi Deus que quis assim.
19.1.12
A CRACOLÂNDIA QUE ENFIM INTERESSA
Antigamente, uma Cracolândia não interessava no jogo político. Como se tratava só de um reduto de pessoas que dificilmente portam títulos de eleitor – e condições de usá-los –, tudo se restringia a incursões pontuais de autoridades, ora de Saúde, ora de Segurança. A população que podia evitava seus domínios; a que mora ou trabalha nos seus arredores, convive com o medo, a miséria e a violência. Se viesse uma denúncia da oposição (qualquer que fosse a que estivesse no turno), ninguém se comovia. Era terra de ninguém, inexistente no mapa da maioria dos paulistanos.
Mas recentemente as capitais da sexta economia mundial descobriram que seus centros degradados poderiam ser úteis para atrair parceiros ideais: empreiteiras e imobiliárias capazes de contribuir de forma decisiva para as campanhas, que andavam meio chateadas com a estagnação das áreas nobres para a construção e notaram a mina de terrenos bem localizados, que deveriam pertencer a alguém. No Rio, o Porto Maravilha (não uma cracolândia deflagrada, mas tão degradada quanto); em São Paulo, a Nova Luz; todos projetos concedidos à administração da iniciativa privada, que pode explorá-la e transformá-la sem muitos debates e sem que o urbanismo seja a meta principal no processo de revitalização.
Os governos ajudam os consórcios como podem. A prefeitura de São Paulo já toca o processo de demolição de imóveis desinteressantes nos arredores da Nova Luz e, em parceria com o Estado, espana o miserê que não vota. Constitucionalmente, não se pode obrigar viciados a se tratarem, mas é possível debandá-los – suficiente para a cosmética do jogo eleitoral.
Por sua vez, a oposição churrasqueira faz questão de esquecer que já esteve na prefeitura com Marta Suplicy (PT), num mandato que nem de perto estancou a degradação no local. Como agora, não se estabeleceu nenhum programa de longa duração – algo fundamental no combate a um vício devastador com toques de epidemia, como o crack – quando prefeita e presidente eram igualmente petistas.
Agora toda a cidade se dedica a debater o tema, mas com prazo certo até as próximas eleições. Avanços? Sem dúvida. A Cracolândia finalmente interessa; os humanos, ainda não.
Antigamente, uma Cracolândia não interessava no jogo político. Como se tratava só de um reduto de pessoas que dificilmente portam títulos de eleitor – e condições de usá-los –, tudo se restringia a incursões pontuais de autoridades, ora de Saúde, ora de Segurança. A população que podia evitava seus domínios; a que mora ou trabalha nos seus arredores, convive com o medo, a miséria e a violência. Se viesse uma denúncia da oposição (qualquer que fosse a que estivesse no turno), ninguém se comovia. Era terra de ninguém, inexistente no mapa da maioria dos paulistanos.
Mas recentemente as capitais da sexta economia mundial descobriram que seus centros degradados poderiam ser úteis para atrair parceiros ideais: empreiteiras e imobiliárias capazes de contribuir de forma decisiva para as campanhas, que andavam meio chateadas com a estagnação das áreas nobres para a construção e notaram a mina de terrenos bem localizados, que deveriam pertencer a alguém. No Rio, o Porto Maravilha (não uma cracolândia deflagrada, mas tão degradada quanto); em São Paulo, a Nova Luz; todos projetos concedidos à administração da iniciativa privada, que pode explorá-la e transformá-la sem muitos debates e sem que o urbanismo seja a meta principal no processo de revitalização.
Os governos ajudam os consórcios como podem. A prefeitura de São Paulo já toca o processo de demolição de imóveis desinteressantes nos arredores da Nova Luz e, em parceria com o Estado, espana o miserê que não vota. Constitucionalmente, não se pode obrigar viciados a se tratarem, mas é possível debandá-los – suficiente para a cosmética do jogo eleitoral.
Por sua vez, a oposição churrasqueira faz questão de esquecer que já esteve na prefeitura com Marta Suplicy (PT), num mandato que nem de perto estancou a degradação no local. Como agora, não se estabeleceu nenhum programa de longa duração – algo fundamental no combate a um vício devastador com toques de epidemia, como o crack – quando prefeita e presidente eram igualmente petistas.
Agora toda a cidade se dedica a debater o tema, mas com prazo certo até as próximas eleições. Avanços? Sem dúvida. A Cracolândia finalmente interessa; os humanos, ainda não.
18.1.12
D’ALÉM-MÁRVIO*
PROSPERIDADE BRASUCA EM TESTE
Enquanto o Rio esquenta os tamborins, ávidos por mais um Carnaval, São Paulo debate a truculência de uma ação da polícia militar em áreas do centro infestadas há uma década por viciados em crack. Em breve, porém, saberemos o quão hospitaleira a atual sexta economia do mundo pretende ser com estrangeiros.
De um lado, a necessidade de tocar obras estruturais (muitas visando à Copa-2014 e à Olimpíada-2016) confronta o déficit de profissionais locais adequados. Do outro, um país que virou sonho de porto seguro no mundo, o que atrai - legal ou ilegalmente – europeus, vizinhos e, mais recentemente, oriundos do calamitoso Haiti.
No ano passado, foram concedidos 51,3 mil vistos de trabalho a estrangeiros. Segundo o jornal “O Globo”, um aumento de 32% em relação a 2010 - e ainda haveria 400 mil profissionais dispostos a vir tentar a vida. Acrescente-se os brasileiros que voltam do exterior, graças ao cenário mais favorável, e surgem dúvidas se a relativa prosperidade brasuca segura essa peteca.
Dilma Rousseff pretende facilitar a entrada de mão-de-obra, hoje prejudicada pela burocracia kafkiana. Mas a detecção de 3 mil haitianos ilegais e tráfico humano na região Norte ligou um alerta, e o governo já fala americanamente em restrição de vistos para aquele país.
Como claramente há trabalho (sobretudo na construção civil e nas engenharias) e a taxa nacional de desemprego ronda os 5%, nada favorece uma xenofobia de molde europeu. Por ora, o mais perto de uma reclamação das ruas contra as hordas de estrangeiros ocorre no Rio, em razão da disparada de preços de imóveis e serviços trazida pelo interesse internacional que lota a cidade.
Mas, como até os visitantes se queixam de que tudo é caro, essa dureza mais nos une que separa.
*nome da coluna publicada sempre às quartas-feiras, a partir de hoje, no Destak de Portugal
PROSPERIDADE BRASUCA EM TESTE
Enquanto o Rio esquenta os tamborins, ávidos por mais um Carnaval, São Paulo debate a truculência de uma ação da polícia militar em áreas do centro infestadas há uma década por viciados em crack. Em breve, porém, saberemos o quão hospitaleira a atual sexta economia do mundo pretende ser com estrangeiros.
De um lado, a necessidade de tocar obras estruturais (muitas visando à Copa-2014 e à Olimpíada-2016) confronta o déficit de profissionais locais adequados. Do outro, um país que virou sonho de porto seguro no mundo, o que atrai - legal ou ilegalmente – europeus, vizinhos e, mais recentemente, oriundos do calamitoso Haiti.
No ano passado, foram concedidos 51,3 mil vistos de trabalho a estrangeiros. Segundo o jornal “O Globo”, um aumento de 32% em relação a 2010 - e ainda haveria 400 mil profissionais dispostos a vir tentar a vida. Acrescente-se os brasileiros que voltam do exterior, graças ao cenário mais favorável, e surgem dúvidas se a relativa prosperidade brasuca segura essa peteca.
Dilma Rousseff pretende facilitar a entrada de mão-de-obra, hoje prejudicada pela burocracia kafkiana. Mas a detecção de 3 mil haitianos ilegais e tráfico humano na região Norte ligou um alerta, e o governo já fala americanamente em restrição de vistos para aquele país.
Como claramente há trabalho (sobretudo na construção civil e nas engenharias) e a taxa nacional de desemprego ronda os 5%, nada favorece uma xenofobia de molde europeu. Por ora, o mais perto de uma reclamação das ruas contra as hordas de estrangeiros ocorre no Rio, em razão da disparada de preços de imóveis e serviços trazida pelo interesse internacional que lota a cidade.
Mas, como até os visitantes se queixam de que tudo é caro, essa dureza mais nos une que separa.
*nome da coluna publicada sempre às quartas-feiras, a partir de hoje, no Destak de Portugal
12.1.12
CULTURA X DIVERSÃO, OU VOCÊ DANÇANDO
[Destak desta sexta, 13.jan.2012]
A relação com a música para dançar raramente é desonesta. E, sim, ainda é cultura
O que chamamos de internet 2.0, essa definida pela participação ativa do usuário na produção de conteúdo e nas redes sociais, é uma faca de dois gumes para a produção cultural. Democratizados os meios de produção e divulgação, qualquer um pode fazer sua música, seu vídeo, sua exposição de fotografias e estampar na rede. Mais: realça o papel do público sobre "o que importa", enquanto relativiza o do crítico.
Tudo isso reescreve os conceitos sobre quem é artista e sobre o que é cultura. Muita gente boa se perde nessa e até aponta metralhadoras verbais aonde não deveria. A velha pergunta “O que é cultura?”, surrada e espancada nas melhores (e piores) faculdades de ciências humanas, parece não achar respostas. Mas só para quem não quer ver que hoje faz-se cultura até no Twitter, essa praça pública de aforismos e frases de efeito que Nelson Rodrigues, Oscar Wilde e Blaise Pascal amariam.
O cantor Michel Teló, sucesso mundial made in Brazil, é obviamente um produto cultural, guiado por diretrizes que têm a ver com o gosto popular. Mirando no que viu e acertando no que não viu, atingiu-se um fenômeno internacional. O número de exibições no YouTube de “Ai, Se Eu te Pego” supera o de hits de estrelas internacionais. E esse êxito total vai falar muito sobre as exigências estéticas daqueles que abraçam a canção no momento em que elas a ouvem.
As pessoas querem dançar a seu modo e elas não fazem isso com qualquer repertório: isso impulsionou a valsa vienense, o forró nordestino, o samba, o funk carioca. Michel Teló cumpre um papel, quase um serviço, quando compreende como agradar tais fãs.
(Aliás, para efeito de contraste, há no Rio um bloco de Carnaval chamado Mulheres de Chico, que se dedica ao repertório do Buarque. Amo as músicas e as letras, mas sinceramente, não funcionam na folia: dão sono, mesmo com toda a erudição envolvida, porque não escolhem refrães fáceis, e Carnaval sem refrão não rola.)
Enfim, não é de hoje que se produz música (e cinema, e literatura, e teatro, e artes visuais) com o intuito de agradar um público e extrair o$ fruto$ desse sucesso. É uma relação raramente desonesta, e há mais artificialismo em certos discos de MPB do que em música feita simplesmente para divertir os quadris. É claro que sempre podemos perguntar o que é que a nossa cultura pretende e reflete de nós hoje. Feliz ou infelizmente, talvez tenhamos que rebolar para responder.
[Destak desta sexta, 13.jan.2012]
A relação com a música para dançar raramente é desonesta. E, sim, ainda é cultura
O que chamamos de internet 2.0, essa definida pela participação ativa do usuário na produção de conteúdo e nas redes sociais, é uma faca de dois gumes para a produção cultural. Democratizados os meios de produção e divulgação, qualquer um pode fazer sua música, seu vídeo, sua exposição de fotografias e estampar na rede. Mais: realça o papel do público sobre "o que importa", enquanto relativiza o do crítico.
Tudo isso reescreve os conceitos sobre quem é artista e sobre o que é cultura. Muita gente boa se perde nessa e até aponta metralhadoras verbais aonde não deveria. A velha pergunta “O que é cultura?”, surrada e espancada nas melhores (e piores) faculdades de ciências humanas, parece não achar respostas. Mas só para quem não quer ver que hoje faz-se cultura até no Twitter, essa praça pública de aforismos e frases de efeito que Nelson Rodrigues, Oscar Wilde e Blaise Pascal amariam.
O cantor Michel Teló, sucesso mundial made in Brazil, é obviamente um produto cultural, guiado por diretrizes que têm a ver com o gosto popular. Mirando no que viu e acertando no que não viu, atingiu-se um fenômeno internacional. O número de exibições no YouTube de “Ai, Se Eu te Pego” supera o de hits de estrelas internacionais. E esse êxito total vai falar muito sobre as exigências estéticas daqueles que abraçam a canção no momento em que elas a ouvem.
As pessoas querem dançar a seu modo e elas não fazem isso com qualquer repertório: isso impulsionou a valsa vienense, o forró nordestino, o samba, o funk carioca. Michel Teló cumpre um papel, quase um serviço, quando compreende como agradar tais fãs.
(Aliás, para efeito de contraste, há no Rio um bloco de Carnaval chamado Mulheres de Chico, que se dedica ao repertório do Buarque. Amo as músicas e as letras, mas sinceramente, não funcionam na folia: dão sono, mesmo com toda a erudição envolvida, porque não escolhem refrães fáceis, e Carnaval sem refrão não rola.)
Enfim, não é de hoje que se produz música (e cinema, e literatura, e teatro, e artes visuais) com o intuito de agradar um público e extrair o$ fruto$ desse sucesso. É uma relação raramente desonesta, e há mais artificialismo em certos discos de MPB do que em música feita simplesmente para divertir os quadris. É claro que sempre podemos perguntar o que é que a nossa cultura pretende e reflete de nós hoje. Feliz ou infelizmente, talvez tenhamos que rebolar para responder.
29.12.11
UMA RETROSPECTIVA PESSOAL DE 2011
Elegeram o manifestante, do Egito a Wall Street, o homem do ano. Disseram que “Recanto”, o disco da Gal composto por Caetano Veloso, foi o melhor do ano. Afirmaram que o Brasil vai ultrapassar o Reino Unido na lista de maiores economias no mundo, a reboque da crise financeira que faz a Europa reduzir seu passo ao ritmo do cágado. Amy Winehouse, enfim, descansa. Steve Jobs também.
Ainda olho para trás e, não sei por quê, de tudo que marcou o ano no noticiário, o que mais me martela ainda é o massacre perpetrado por um maníaco na escola municipal de Realengo, zona oeste do RIo, no dia 7 de abril. Parece ser o primeiro fato que me vem à mente quando tento me lembrar de tudo que aconteceu no mundo em 2011. Ali foram mortas 12 crianças.
Outras foram salvas pelo sargento Márcio Alves, da Polícia Militar, que não matou Wellington Menezes de Oliveira; com sangue frio, acertou-lhe uma bala no abdômen. Wellington sobreviveria, se não tivesse atirado contra sua própria cabeça em seguida.
Naquela dia, voltei diferente para casa. Tudo me parecia com um ar completamente diferente, irrespirável – o trabalho, a vida, a saúde mental, nada parecia ser um refúgio depois de um dia inteiro acompanhando aquele noticiário em que pareciam inúteis todos os esforços de compreender o trauma e tentar criar uma zona de conforto – seja apontando supostas culpas, seja imaginando prevenções.
Foi como se 2011 parasse ali, e todo o mais não fosse necessário, depois daquela monstruosidade. A partir dali, todos os meses restantes de 2011 se tornaram um mero acúmulo de tentativas de minimizar aquele golpe de violência gratuita e, quem sabe, acreditar que, apesar de todo o nojo, a existência ainda pode valer mais do que essas penas e dobrar negros pessimismos, em vez de nos obrigarmos a concordar com Shakespeare, quando diz que a vida é a “história contada por um idiota, cheia de som e fúria, e nada significa”, e a viver conformados – já que estatisticamente ela é isso mesmo.
Que em 2012 você possa contrariar todas as estatísticas mais pessimistas do mundo, escapar de algumas das que ainda serão feitas e que possa provar a si mesmo que há motivos para ser feliz sem sentir vergonha disso. Que há gente sofrendo no mundo, todos sabemos. Mas há um coração que pulsa no seu peito, e você é o responsável primário pela alegria dele.
Elegeram o manifestante, do Egito a Wall Street, o homem do ano. Disseram que “Recanto”, o disco da Gal composto por Caetano Veloso, foi o melhor do ano. Afirmaram que o Brasil vai ultrapassar o Reino Unido na lista de maiores economias no mundo, a reboque da crise financeira que faz a Europa reduzir seu passo ao ritmo do cágado. Amy Winehouse, enfim, descansa. Steve Jobs também.
Ainda olho para trás e, não sei por quê, de tudo que marcou o ano no noticiário, o que mais me martela ainda é o massacre perpetrado por um maníaco na escola municipal de Realengo, zona oeste do RIo, no dia 7 de abril. Parece ser o primeiro fato que me vem à mente quando tento me lembrar de tudo que aconteceu no mundo em 2011. Ali foram mortas 12 crianças.
Outras foram salvas pelo sargento Márcio Alves, da Polícia Militar, que não matou Wellington Menezes de Oliveira; com sangue frio, acertou-lhe uma bala no abdômen. Wellington sobreviveria, se não tivesse atirado contra sua própria cabeça em seguida.
Naquela dia, voltei diferente para casa. Tudo me parecia com um ar completamente diferente, irrespirável – o trabalho, a vida, a saúde mental, nada parecia ser um refúgio depois de um dia inteiro acompanhando aquele noticiário em que pareciam inúteis todos os esforços de compreender o trauma e tentar criar uma zona de conforto – seja apontando supostas culpas, seja imaginando prevenções.
Foi como se 2011 parasse ali, e todo o mais não fosse necessário, depois daquela monstruosidade. A partir dali, todos os meses restantes de 2011 se tornaram um mero acúmulo de tentativas de minimizar aquele golpe de violência gratuita e, quem sabe, acreditar que, apesar de todo o nojo, a existência ainda pode valer mais do que essas penas e dobrar negros pessimismos, em vez de nos obrigarmos a concordar com Shakespeare, quando diz que a vida é a “história contada por um idiota, cheia de som e fúria, e nada significa”, e a viver conformados – já que estatisticamente ela é isso mesmo.
Que em 2012 você possa contrariar todas as estatísticas mais pessimistas do mundo, escapar de algumas das que ainda serão feitas e que possa provar a si mesmo que há motivos para ser feliz sem sentir vergonha disso. Que há gente sofrendo no mundo, todos sabemos. Mas há um coração que pulsa no seu peito, e você é o responsável primário pela alegria dele.
19.12.11
Adeus ao inimigo do senso comum
O fim de semana de perdas históricas - Cesária Évora, Joãosinho Trinta, Sérgio Britto, Vaclav Havel e o time do Santos - não foi suficiente para me demover de escrever sobre outra, ocorrida na quinta-feira, quando morreu o escritor e jornalista Christopher Hitchens, 62.
Autor de "Deus Não É Grande" (Ediouro, 2007), o inglês foi uma das mentes mais inquietas do nosso tempo. Contrário às religiões - por acreditar que elas são instrumentos de repressão do livre pensamento -, Hitchens foi um pensador apaixonado pela ideia da democracia e pelos valores do Ocidente, mas acima de tudo um determinado a enfrentar o senso comum. Sobre esses pilares, estruturou toda a sua defesa da incursão americana no Iraque - talvez sua segunda posição mais polêmica, depois do seu ateísmo militante.
Pessoalmente, discordo de Hitchens tanto na sua ótica sobre religião quanto ao apoio àquela guerra: nem a administração Bush merecia o suporte de tamanha inteligência numa invasão tão suja, nem a religião é só convite às trevas. Ao contrário, parte significativa do nosso conceito de civilização atual (democracia e justiça social inclusas) surge de culturas monoteístas.
O que deve ser elogiado em Hitchens é seu método. A capacidade incrível de equacionar conhecimentos históricos e emitir opiniões fundamentadas com um estilo literário assombroso fizeram-no um intelectual diverso, para consumo universal, capaz de ver mal em figuras indiscutíveis que vão desde madre Teresa de Calcutá ao ex-premiê britânico Winston Churchill, cultuado na Inglaterra e nos EUA.
Não que seja preciso aceitar seus pontos de vista (ele certamente odiaria ser visto como uma pessoa acima de qualquer suspeita ou um "mentor para a civilização"), mas a veemência do discurso hitchensiano nos fazia pensar, porque estava longe da irrelevância. Na questão religiosa, por exemplo, além de dar argumentos fulminantes aos ateus (que normalmente baseiam suas posições em experiências pessoais), ele obrigou os pensadores cristãos a virem ao debate muito mais preparados, sacudindo-lhes o mofo com sua coragem e retórica afiadíssima. Ambos os lados ganharam.
Com a partida de Hitchens, a lacuna que fica nos obriga a sermos tão inteligentes e assertivos quanto ele na defesa das liberdades que temos, das que queremos e das opiniões que, mesmo explosivas, se fazem necessárias.
O fim de semana de perdas históricas - Cesária Évora, Joãosinho Trinta, Sérgio Britto, Vaclav Havel e o time do Santos - não foi suficiente para me demover de escrever sobre outra, ocorrida na quinta-feira, quando morreu o escritor e jornalista Christopher Hitchens, 62.
Autor de "Deus Não É Grande" (Ediouro, 2007), o inglês foi uma das mentes mais inquietas do nosso tempo. Contrário às religiões - por acreditar que elas são instrumentos de repressão do livre pensamento -, Hitchens foi um pensador apaixonado pela ideia da democracia e pelos valores do Ocidente, mas acima de tudo um determinado a enfrentar o senso comum. Sobre esses pilares, estruturou toda a sua defesa da incursão americana no Iraque - talvez sua segunda posição mais polêmica, depois do seu ateísmo militante.
Pessoalmente, discordo de Hitchens tanto na sua ótica sobre religião quanto ao apoio àquela guerra: nem a administração Bush merecia o suporte de tamanha inteligência numa invasão tão suja, nem a religião é só convite às trevas. Ao contrário, parte significativa do nosso conceito de civilização atual (democracia e justiça social inclusas) surge de culturas monoteístas.
O que deve ser elogiado em Hitchens é seu método. A capacidade incrível de equacionar conhecimentos históricos e emitir opiniões fundamentadas com um estilo literário assombroso fizeram-no um intelectual diverso, para consumo universal, capaz de ver mal em figuras indiscutíveis que vão desde madre Teresa de Calcutá ao ex-premiê britânico Winston Churchill, cultuado na Inglaterra e nos EUA.
Não que seja preciso aceitar seus pontos de vista (ele certamente odiaria ser visto como uma pessoa acima de qualquer suspeita ou um "mentor para a civilização"), mas a veemência do discurso hitchensiano nos fazia pensar, porque estava longe da irrelevância. Na questão religiosa, por exemplo, além de dar argumentos fulminantes aos ateus (que normalmente baseiam suas posições em experiências pessoais), ele obrigou os pensadores cristãos a virem ao debate muito mais preparados, sacudindo-lhes o mofo com sua coragem e retórica afiadíssima. Ambos os lados ganharam.
Com a partida de Hitchens, a lacuna que fica nos obriga a sermos tão inteligentes e assertivos quanto ele na defesa das liberdades que temos, das que queremos e das opiniões que, mesmo explosivas, se fazem necessárias.
15.12.11
O mais novo poeta antigo do Brasil
Um dos personagens mais interessantes criados por Woody Allen está no filme “Vicky Christina Barcelona”. Trata-se do pai do artista vivido por Javier Bardem: homem que, segundo seu filho, é capaz de “escrever os versos de amor mais belos da Terra”, mas que jamais os publicaria em vida, por acreditar que “o mundo é incapaz de compreendê-los”.
Parece que tal poeta existe, é pernambucano e padre. Chama-se Daniel Lima, tem 95 anos e foi agraciado há uma semana com o prêmio do Concurso Literário da Biblioteca Nacional.
Levou o valor de R$ 12,5 mil quase por acidente, uma vez que a obra foi inscrita no concurso por amigos – Daniel não intencionava publicações em vida e até mesmo foi contra, quando soube do que lhe foi feito à revelia. Acabou por superar mestres como Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant’Anna.
Perfis publicados nos jornais dão conta de uma timidez doentia como a principal razão para que Daniel tenha atravessado quase um século sem permitir que nós pudéssemos conhecê-lo.
Ao brilhante repórter Fabio Victor, da “Folha de S.Paulo”, Daniel resumiu sua condição atual de poeta hospitalizado, impedido de receber em mãos o prêmio que lhe deram: “Adoeci de Daniel. O mundo é muito importante, eu fico meio desorientado. Para me enquadrar nele eu tenho de sofrer e adoeço”. Missão quase tão improvável para nossos dias quanto ler poesia.
No país campeão mundial em analfabetismo funcional, poemas são ensinados como esfinges, enigmas para respostas longínquas, quando deveriam ser estopins para a detonação das verdades que guardamos em nós e de nós – e que eles sabem compreender e revelar.
Leia, por exemplo, o trecho de “Casa Revisitada”, do novo poeta antigo de Pernambuco, e veja se é possível não se identificar com ele.
“Na frente, um portão velho que rangia
como se dissesse coisas tristes a quem por ela passava.
E dentro da casa onde nasci
um corredor sem fim corria não sei para onde
E nem sei por que corria
o corredor sem fim da casa onde nasci
nem sei para onde.”
“Poemas”, de Daniel Lima, foi editado pela Cepe (R$ 45). Arrisque-se.
Um dos personagens mais interessantes criados por Woody Allen está no filme “Vicky Christina Barcelona”. Trata-se do pai do artista vivido por Javier Bardem: homem que, segundo seu filho, é capaz de “escrever os versos de amor mais belos da Terra”, mas que jamais os publicaria em vida, por acreditar que “o mundo é incapaz de compreendê-los”.
Parece que tal poeta existe, é pernambucano e padre. Chama-se Daniel Lima, tem 95 anos e foi agraciado há uma semana com o prêmio do Concurso Literário da Biblioteca Nacional.
Levou o valor de R$ 12,5 mil quase por acidente, uma vez que a obra foi inscrita no concurso por amigos – Daniel não intencionava publicações em vida e até mesmo foi contra, quando soube do que lhe foi feito à revelia. Acabou por superar mestres como Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant’Anna.
Perfis publicados nos jornais dão conta de uma timidez doentia como a principal razão para que Daniel tenha atravessado quase um século sem permitir que nós pudéssemos conhecê-lo.
Ao brilhante repórter Fabio Victor, da “Folha de S.Paulo”, Daniel resumiu sua condição atual de poeta hospitalizado, impedido de receber em mãos o prêmio que lhe deram: “Adoeci de Daniel. O mundo é muito importante, eu fico meio desorientado. Para me enquadrar nele eu tenho de sofrer e adoeço”. Missão quase tão improvável para nossos dias quanto ler poesia.
No país campeão mundial em analfabetismo funcional, poemas são ensinados como esfinges, enigmas para respostas longínquas, quando deveriam ser estopins para a detonação das verdades que guardamos em nós e de nós – e que eles sabem compreender e revelar.
Leia, por exemplo, o trecho de “Casa Revisitada”, do novo poeta antigo de Pernambuco, e veja se é possível não se identificar com ele.
“Na frente, um portão velho que rangia
como se dissesse coisas tristes a quem por ela passava.
E dentro da casa onde nasci
um corredor sem fim corria não sei para onde
E nem sei por que corria
o corredor sem fim da casa onde nasci
nem sei para onde.”
“Poemas”, de Daniel Lima, foi editado pela Cepe (R$ 45). Arrisque-se.
12.12.11
Som que marca a alma a ferro
[Destak, 12/12]
Há um novo documentário de Eduardo Coutinho nos cinemas, o que significa que temos mais uma razão para aplaudi-lo. Trata-se de um cineasta que compreende como poucos as maneiras de transformar o real em arte.
Desta vez, Coutinho mergulha fundo na relação entre memória e música. Já em "Edifício Master", ao menos três dos moradores de um prédio superpovoado em Copacabana cantavam temas inteiros. Em "As Canções", que acaba de estrear, cada entrevistado conta sua mais preciosa história, sempre citando a música brasileira que a pontuou. A maior parte dos relatos é de romances, bem ou malsucedidos, com algumas dramáticas lembranças de perda de pais aqui e ali. Quando se precisa de um fio-condutor que costure os depoimentos, é possível se convencer de que um deles é o machismo.
Na tela, um marinheiro que admite ter culpas em relação à mulher e que se compadece com o volume de trabalho dela no lar, mas que não lava um prato para ajudar. Depois temos Queimado, o homem que é visto pela namorada num baile com outra mulher. A namorada sai de lá com outro homem e, dias depois, Queimado consegue inverter a situação de forma tão magistral quanto absurda: a namorada é quem estava errada. Há ainda mais algumas mulheres que têm de lidar com a existência das amantes, de forma conformada ou até despreocupada.
A esse aparente atraso no que compete ao papel feminino, misturam-se letras de amores rasgados, homens e mulheres vítimas de feridas incuráveis, o que nos faz pensar que somos habituados ao conceito de que o mais bem-sucedido dos amores passa por uma opção de sofrimento. Escolhemos algo que nos é contrário, que até nos fere na dignidade (nas mulheres do filme, isso quase sempre se refere a submeter-se a um machismo), porque nos tira de um individualismo que protege. Dói, mas aceita-se pelo que se considera ser o "bem maior".
E vê-se que o amor inesquecível faz brotar lágrimas, como lembrança desse sofrimento autoimposto, seja porque foi árdua a luta para conquistá-lo até torná-lo bem-sucedido, seja porque dói admitir que a realidade era mais forte que o desejo. Encerra Coutinho glorificando a música, essa forma de arte maior que todas as outras, que marca memória e alma a ferro, mas também alivia quando entendemos que viver sem dores é já ter morrido.
[Destak, 12/12]
Há um novo documentário de Eduardo Coutinho nos cinemas, o que significa que temos mais uma razão para aplaudi-lo. Trata-se de um cineasta que compreende como poucos as maneiras de transformar o real em arte.
Desta vez, Coutinho mergulha fundo na relação entre memória e música. Já em "Edifício Master", ao menos três dos moradores de um prédio superpovoado em Copacabana cantavam temas inteiros. Em "As Canções", que acaba de estrear, cada entrevistado conta sua mais preciosa história, sempre citando a música brasileira que a pontuou. A maior parte dos relatos é de romances, bem ou malsucedidos, com algumas dramáticas lembranças de perda de pais aqui e ali. Quando se precisa de um fio-condutor que costure os depoimentos, é possível se convencer de que um deles é o machismo.
Na tela, um marinheiro que admite ter culpas em relação à mulher e que se compadece com o volume de trabalho dela no lar, mas que não lava um prato para ajudar. Depois temos Queimado, o homem que é visto pela namorada num baile com outra mulher. A namorada sai de lá com outro homem e, dias depois, Queimado consegue inverter a situação de forma tão magistral quanto absurda: a namorada é quem estava errada. Há ainda mais algumas mulheres que têm de lidar com a existência das amantes, de forma conformada ou até despreocupada.
A esse aparente atraso no que compete ao papel feminino, misturam-se letras de amores rasgados, homens e mulheres vítimas de feridas incuráveis, o que nos faz pensar que somos habituados ao conceito de que o mais bem-sucedido dos amores passa por uma opção de sofrimento. Escolhemos algo que nos é contrário, que até nos fere na dignidade (nas mulheres do filme, isso quase sempre se refere a submeter-se a um machismo), porque nos tira de um individualismo que protege. Dói, mas aceita-se pelo que se considera ser o "bem maior".
E vê-se que o amor inesquecível faz brotar lágrimas, como lembrança desse sofrimento autoimposto, seja porque foi árdua a luta para conquistá-lo até torná-lo bem-sucedido, seja porque dói admitir que a realidade era mais forte que o desejo. Encerra Coutinho glorificando a música, essa forma de arte maior que todas as outras, que marca memória e alma a ferro, mas também alivia quando entendemos que viver sem dores é já ter morrido.
4.12.11
Corinthians penta: um roteiro do futebol pós-socrático
Que o fim do Campeonato Brasileiro não poderia ser mais excitante do que ontem, todos já sabíamos. A ideia de programar os clássicos de arqui-rivais na última rodada foi uma das mais brilhantes saídas para prevenir a possível falta de profissionalismo ou atitudes antiéticas de clubes e jogadores. O que jamais poderíamos imaginar é que os deuses do futebol tinham se tornado tão bons cineastas.
Um hipotético filme sobre o penta do Vasco já seria de um roteiro magistral. Pense: a superação de um clube e uma torcida que encerraram uma década terrível com dois títulos nacionais no mesmo ano. A sagração de Juninho Pernambucano, a redenção de Felipe, um tributo à luta de Ricardo Gomes pela vida, o conto de um humilde auxiliar técnico, Cristóvão Borges, que virou o guia certo na hora certa.
Um belo e merecido roteiro, que não será filmado. Desta vez, a sinopse campeã é a de um time que começou o ano eliminado na Pré-Libertadores pelo folclórico Tolima. Manteve-se o técnico, contratou-se Adriano (para fazer o gol mais caro da temporada) e, como tudo deve convergir, o gol que a torcida comemorou foi marcado por Renato, do Flamengo, um jogador que foi revelado no Parque São Jorge – e que quase foi detestado por lá. E tudo para erguer a taça do penta como tributo a um homem que foi herói e anti-herói corintiano a um só tempo. Sócrates não foi apenas um craque extraclasse. Talvez por carregar o nome de pensador, o irmão de Raí se obrigou a ser um homem de raciocínio, opinião e personalidade.
Não bastasse a criatividade de usar o toque de calcanhar para compensar sua lentidão – que se devia tanto à sua altura 1,91 m quanto a sua aversão à vida de treinos e restrições alcoólicas –, Sócrates viu no futebol uma forma de conscientizar os brasileiros sobre a necessidade de mais democracia. Além disso, viveu como quis, triunfou o quanto pôde, deixou sua marca no seio da torcida. Esporte para ele não foi saúde o tempo todo: fumava, bebia, pouco treinava. Nada muito diferente da vida de outros jogadores da história recente corintiana, mas a diferença é que com Sócrates nunca houve sonsice. Magrão nunca precisou parecer alguém que ele nunca foi. Fará falta na festa alvinegra e na Copa do Mundo de 2014: poderia lembrar aos craques que contestar também é parte do jogo.
Que o fim do Campeonato Brasileiro não poderia ser mais excitante do que ontem, todos já sabíamos. A ideia de programar os clássicos de arqui-rivais na última rodada foi uma das mais brilhantes saídas para prevenir a possível falta de profissionalismo ou atitudes antiéticas de clubes e jogadores. O que jamais poderíamos imaginar é que os deuses do futebol tinham se tornado tão bons cineastas.
Um hipotético filme sobre o penta do Vasco já seria de um roteiro magistral. Pense: a superação de um clube e uma torcida que encerraram uma década terrível com dois títulos nacionais no mesmo ano. A sagração de Juninho Pernambucano, a redenção de Felipe, um tributo à luta de Ricardo Gomes pela vida, o conto de um humilde auxiliar técnico, Cristóvão Borges, que virou o guia certo na hora certa.
Um belo e merecido roteiro, que não será filmado. Desta vez, a sinopse campeã é a de um time que começou o ano eliminado na Pré-Libertadores pelo folclórico Tolima. Manteve-se o técnico, contratou-se Adriano (para fazer o gol mais caro da temporada) e, como tudo deve convergir, o gol que a torcida comemorou foi marcado por Renato, do Flamengo, um jogador que foi revelado no Parque São Jorge – e que quase foi detestado por lá. E tudo para erguer a taça do penta como tributo a um homem que foi herói e anti-herói corintiano a um só tempo. Sócrates não foi apenas um craque extraclasse. Talvez por carregar o nome de pensador, o irmão de Raí se obrigou a ser um homem de raciocínio, opinião e personalidade.
Não bastasse a criatividade de usar o toque de calcanhar para compensar sua lentidão – que se devia tanto à sua altura 1,91 m quanto a sua aversão à vida de treinos e restrições alcoólicas –, Sócrates viu no futebol uma forma de conscientizar os brasileiros sobre a necessidade de mais democracia. Além disso, viveu como quis, triunfou o quanto pôde, deixou sua marca no seio da torcida. Esporte para ele não foi saúde o tempo todo: fumava, bebia, pouco treinava. Nada muito diferente da vida de outros jogadores da história recente corintiana, mas a diferença é que com Sócrates nunca houve sonsice. Magrão nunca precisou parecer alguém que ele nunca foi. Fará falta na festa alvinegra e na Copa do Mundo de 2014: poderia lembrar aos craques que contestar também é parte do jogo.
18.11.11
Lula, o 'new look' e outros sintomas
[Destak, 18.nov]
Quando escolhemos dar na capa do Destak a foto de Lula despojado de barba e cabelo, as redes sociais já comentavam avidamente a cara nova do ex-presidente, que enfrenta um tumor na laringe. O registro mostra uma cena de família, passa otimismo e mensagens positivas - tanto para quem nutre simpatia pelo político quanto para quem tem de enfrentar um problema semelhante.
Sempre há, porém, ressalvas a respeito de como tratar a foto, que foi divulgada pelo instituto do ex-presidente. Há quem veja por trás da placidez e do bom humor familiar que a foto transpira a intenção de criar uma aura santificada em torno de Lula. Algo que viria a funcionar como bem-vinda blindagem, por assim dizer, nestes dias em que os ministros que lhe pertenciam caem, um a um, no governo Dilma.
Entre os extremos de quem vê uma perniciosa "vontade de hagiografia" de um político ávido pelo poder e de quem saúda a coragem de quem seria "o maior brasileiro de todos os tempos", ainda creio ser possível ver um homem otimista diante de mal tão traiçoeiro.
Como se sabe, muito do sucesso de Lula como político se deu em torno do culto à sua personalidade. Desde os primórdios do PT, a ideia de um líder operário que puxasse melhorias sociais e conscientizasse as massas pareceu encantadora aos seus fundadores, sejam os ideólogos ateus, sejam os padres de esquerda. Lula sempre foi um "messias" interessante, resumindo em si mesmo um conjunto bastante difuso de aliados, ideias e propósitos. Sua oratória popular, além de sua habilidade em criar acordos, tornaram-no uma figura que desperta paixões a favor e contra - talvez hoje os hemisférios mais sintomaticamente hipersensíveis da política nacional. A relevância de Lula para a história recente justifica que a surpreendente retirada de sua barba, famosa há mais de 30 anos, ganhe as capas de boa parte da imprensa.
Se Lula vai capitalizar esse momento para eleições futuras, não podemos dizer. Pessoalmente, desejo que supere tanto a doença quanto possíveis tentações futuras de usar um novo drama pessoal. Dilma deu um belo exemplo ao não fazer alarde sobre o tumor linfático que contornou antes das eleições de 2010. Que Lula possa imitá-la na saúde e na nobreza.
[Destak, 18.nov]
Quando escolhemos dar na capa do Destak a foto de Lula despojado de barba e cabelo, as redes sociais já comentavam avidamente a cara nova do ex-presidente, que enfrenta um tumor na laringe. O registro mostra uma cena de família, passa otimismo e mensagens positivas - tanto para quem nutre simpatia pelo político quanto para quem tem de enfrentar um problema semelhante.
Sempre há, porém, ressalvas a respeito de como tratar a foto, que foi divulgada pelo instituto do ex-presidente. Há quem veja por trás da placidez e do bom humor familiar que a foto transpira a intenção de criar uma aura santificada em torno de Lula. Algo que viria a funcionar como bem-vinda blindagem, por assim dizer, nestes dias em que os ministros que lhe pertenciam caem, um a um, no governo Dilma.
Entre os extremos de quem vê uma perniciosa "vontade de hagiografia" de um político ávido pelo poder e de quem saúda a coragem de quem seria "o maior brasileiro de todos os tempos", ainda creio ser possível ver um homem otimista diante de mal tão traiçoeiro.
Como se sabe, muito do sucesso de Lula como político se deu em torno do culto à sua personalidade. Desde os primórdios do PT, a ideia de um líder operário que puxasse melhorias sociais e conscientizasse as massas pareceu encantadora aos seus fundadores, sejam os ideólogos ateus, sejam os padres de esquerda. Lula sempre foi um "messias" interessante, resumindo em si mesmo um conjunto bastante difuso de aliados, ideias e propósitos. Sua oratória popular, além de sua habilidade em criar acordos, tornaram-no uma figura que desperta paixões a favor e contra - talvez hoje os hemisférios mais sintomaticamente hipersensíveis da política nacional. A relevância de Lula para a história recente justifica que a surpreendente retirada de sua barba, famosa há mais de 30 anos, ganhe as capas de boa parte da imprensa.
Se Lula vai capitalizar esse momento para eleições futuras, não podemos dizer. Pessoalmente, desejo que supere tanto a doença quanto possíveis tentações futuras de usar um novo drama pessoal. Dilma deu um belo exemplo ao não fazer alarde sobre o tumor linfático que contornou antes das eleições de 2010. Que Lula possa imitá-la na saúde e na nobreza.
11.11.11
Uma oportuna reapresentação
[Destak, 11.nov]
Ocupo este espaço impresso às sextas desde setembro de 2009, como muitos dos habituais leitores do Destak em São Paulo, Rio, Brasília e, mais recentemente, Campinas já sabem. Mas ao exercê-lo hoje pela primeira vez como diretor editorial desta Redação, senti a obrigação de me reapresentar aos que nos prestigiam.
É sempre bom revalidar certos compromissos de tempos em tempos, principalmente quando algumas etapas se concluem e outros desafios se avizinham. Reapresentar-me, portanto, não será mais importante do que recordar os valores editoriais que guiam este jornal por todas as praças que ele percorre a cada dia útil, desde a sua criação.
Em 6 de julho de 2006 - dia da primeira edição do Destak, distribuída somente na cidade de São Paulo - Fábio Santos, meu antecessor neste cargo, escreveu: "O Destak nasce com a missão de atender a um público exigente e sem tempo a perder, que busca informação concisa, mas completa. Em suas páginas, estarão as principais notícias do dia, apresentadas de modo claro e objetivo".
A principal riqueza que se pode ter é o tempo. O seu é precioso, mesmo quando está no trânsito, no metrô ou na pausa para o café. Se nesses breves momentos nós conseguirmos cumprir nossa missão - informar com qualidade - é provável que você possa aproveitar suas horas da noite ou do dia, da folga ou do trabalho, de maneira ainda melhor.
Por mais que os tempos mudem e ganhem maior velocidade, entendemos que nossa missão não muda, porque a informação é outra riqueza indispensável. O jornalismo se presta ao serviço de ajudar na compreensão do que se passa no tempo presente, porque todos temos futuros a construir. Bem informados, pavimentamos melhor esse caminho.
Resta-me salientar que as posições do jornal continuam como sempre: apartidárias, independentes de quaisquer poderes políticos e econômicos, observantes dos melhores padrões éticos e técnicos do jornalismo, respeitadoras da lei em vigor e defensoras dos princípios que regem a democracia. Assim como em 6 de julho de 2006, relembramos em 11 de novembro de 2011 que esperamos contribuir para um país melhor e para o engrandecimento de nossos leitores.
E sim, contaremos sempre com vocês, leitores, para saber como oferecer este serviço da melhor forma. Obrigado.
6.10.11
MIGUEL NICOLELIS PARA A BOLA DE OURO EM 2014
A história do orgulho brasileiro é curta. Nasce por volta de 1950, com a construção do maior estádio do mundo, e tem seu auge em 1970 com o tricampeonato, mas mesmo ali a presença de uma ditadura já nos forçava a relativizar o peito inflado. Desvãos, desvios e arrepios históricos nos convidam a ter muito pouca admiração pela nação que somos.
Somos um país triste e, sim, caro Bertolt Brecht, precisamos desesperadamente de heróis. A sorte é que, vez por outra, eles aparecem. Meu brasileiro vivo preferido é o neurocientista Miguel Nicolelis, que coordena um laboratório na Universidade Duke, na Carolina do Norte, Estados Unidos.
Entrevistei-o por telefone uma vez, em 2006, quando fiz na Folha de S.Paulo um suplemento sobre futebol com craques de outras áreas – filósofos, literatos, artistas, acadêmicos. Miguel representava os cientistas e deu sua opinião sobre o esporte. Desse jeito, vim a saber que ele é hoje um dos pesquisadores do mundo mais próximos de fazer um tetraplégico voltar a andar – ou, no mínimo, a sentir. Na quarta passada, a revista científica Nature publicou resultados impressionantes dele.
Sua equipe conectou computadores diretamente ao cérebro de macacos, por meio de eletrodos e cabos. Com isso, cada macaco controlou na tela a imagem de um braço virtual, que “tocava” objetos visualmente idênticos, mas com texturas diferentes. As texturas emitiam estímulos até à área do cérebro que controla o tato; ali eram captados e diferenciados – pela primeira vez, uma via de mão dupla se estabeleceu em conexões cerebrais diretas.
A cada vez que o macaco identificasse uma textura definida, ganhava um brinde – suco de laranja. Com o tempo, os macacos conseguiram associar a textura à “recompensa”, a fim de conseguir mais suco. Como na tela do computador os objetos virtuais eram idênticos, a visão não podia ajudá-los – só o tato do braço virtual.
Traduzindo, pessoas com deficiências motoras poderão controlar – sempre através do cérebro! – próteses ou roupas robotizadas que lhes darão movimento e sensações de firmeza, temperatura e até, por que não?, carinho.
Miguel sonha que o 1º pontapé do Mundial de 2014 seja dado por uma criança tetraplégica beneficiada por um mecanismo desenvolvido por sua pesquisa. Se der certo, pense: será que precisaremos de mais alguma vitória na Copa?
22.9.11
Rock, ou a religião que se perdeu
[No Destak]
Vai-se um R.E.M., vem um Rock in Rio, e a certeza de que envelheci se aguça. Ir a um festival parece-me hoje sacrifício enorme – que há dez anos, tirava-se de letra. E a verdade é que cada vez menos bandas novas me tocam.
Outro dia, confessei minha falta de entusiasmo com as bandas novas a amigos que celebravam o novo momento. Para eles, finalmente o rock estava livre do culto ao rockstar; temos obras cada vez mais “abertas”e assim não somos obrigados a levar 10 canções para ouvir a única de que gostamos (é só baixá-la). E ainda se pode escolher como ouvi-las: citavam-me o último do Radiohead, que diziam ser ainda melhor na encarnação remixada. Calei-me: nunca me vi prisioneiro de rockstar, nem achava que uma obra “fechada” fosse um mal em si. Havia, sim, discos ruins e discos bons.
Sinto falta de quando o rock, em qualquer língua, tinha mais a dizer. Não exatamente uma mensagem cantada, mas uma postura contestadora de qualquer coisa. Via no rock uma estranha forma de arte, apoiada no trio gravação-show-vida. Por vida, entenda-se tudo que fosse captado pela mídia: declarações, protestos, escândalos, tudo contribuía para reforçar ou até negar a obra. Eles viviam mais intensamente que nós, e isso era também uma forma de arte poderosa – que nos alterava a alma.
Hoje, as bandas não contestam. Ao contrário, elas endossam a vida como ela já está, além de algumas marcas. Propõem quase nada além de dançar. Nada errado em si, mas é como se o rock tivesse selado um pacto de não-agressão com o mundo – e o rock sempre foi perigoso, em qualquer década. Será que o surgimento da internet decretou o fim do tédio, o inimigo comum que o rock sempre enfrentou? Se sempre temos com o que nos distrairmos assim que nos conectamos, contestar já era. Não há mais inimigos, e lugar de sonhar é na cama.
Ser legal não era suficiente para uma banda quando havia gravadoras. Triste é ver que a facilidade de produzir e divulgar rock não promoveu ambições autorais, ou vontade de dar ao público em doses generosas o fascínio dos velhos concertos de rock, que injetavam endorfina. O que tenho visto, salvo raras exceções, são grupos cool , atrás de um ou outro “hit”. Os heróis e os mitos da religião que se perdeu deram lugar a pessoas a quem não precisamos gastar muito de nossas atenções. Elas fazem shows porque gostam; afinal, se fosse apenas um disco tocando, o impacto em nossas vidas seria rigorosamente o mesmo.
1.9.11
A ARTE DE DESTRUIR CASTELOS DE AREIA
[nesta sexta, no Destak]
Era um dos desafios que me impunha quando era só um garoto de sete anos que passava férias de verão na casa de praia do meu avô, em Cabo Frio: construía um castelo de areia ali, mais ou menos perto do mar, e torcia para que, no dia seguinte, eu o encontrasse ali de pé, mais ou menos no mesmo estado.
Ficávamos nessa época muitas horas na praia – nos anos 80, a camada de ozônio não era um tema, nem o câncer de pele um pânico. Então o castelo era construído quase quando o sol se punha. Voltávamos ainda pela manhã e, para minha diária decepção, o castelo nunca ficava para o dia seguinte. Na minha cabeça de criança, era alguém que vinha entre a noite e a manhã e dilapidava meu palacete.
Acreditando que um dia eu teria sorte e essa pessoa pouparia o edifício, passei a construir castelos maiores e mais fortes, com bases realmente largas; às vezes não era nem castelo, mas apenas uma montanha teimosa e grosseira diante do oceano. Usava as pernas e os pés para mover a maior quantidade de areia possível, até que certa vez, com algumas horas de obstinação, consegui uma montanha que era do meu tamanho.
“Agora vai”, pensei. No dia seguinte, cataploft.
Irritado, desabafei com algum adulto – meu avô, meu tio, meu pai? Não me recordo – que me explicou por alto o movimento das marés. Enfim, o mar sempre levaria o castelo embora. Aquilo não era negociável. Aquela nova verdade provocou minha revolta de menos de um metro e quarenta, e eu decretei que nunca mais faria nada na areia.
Não sustentei a decisão por muito tempo. Eram tantas horas na praia que, em algum momento, a coisa mais legal que se podia fazer com primos e amigos era erguer um castelo. Sempre tentávamos algo diferente – um novo ornamento, mais ou menos torres, e até cavernas que pudessem abrigar nossos bonecos e deixar as aventuras deles mais arriscadas.
Descobri assim outra felicidade. Quando a família se retirava da praia, a última brincadeira era correr para a água e atravessar o castelo antes que o mar o levasse, demolindo-o como um gigante, numa sensação de onipotência que só décadas depois fui entender por completo. Muitos desejos são lindos de serem realizados; outros, porém, só servem para nos libertar – justamente quando desistimos deles.
[nesta sexta, no Destak]
Era um dos desafios que me impunha quando era só um garoto de sete anos que passava férias de verão na casa de praia do meu avô, em Cabo Frio: construía um castelo de areia ali, mais ou menos perto do mar, e torcia para que, no dia seguinte, eu o encontrasse ali de pé, mais ou menos no mesmo estado.
Ficávamos nessa época muitas horas na praia – nos anos 80, a camada de ozônio não era um tema, nem o câncer de pele um pânico. Então o castelo era construído quase quando o sol se punha. Voltávamos ainda pela manhã e, para minha diária decepção, o castelo nunca ficava para o dia seguinte. Na minha cabeça de criança, era alguém que vinha entre a noite e a manhã e dilapidava meu palacete.
Acreditando que um dia eu teria sorte e essa pessoa pouparia o edifício, passei a construir castelos maiores e mais fortes, com bases realmente largas; às vezes não era nem castelo, mas apenas uma montanha teimosa e grosseira diante do oceano. Usava as pernas e os pés para mover a maior quantidade de areia possível, até que certa vez, com algumas horas de obstinação, consegui uma montanha que era do meu tamanho.
“Agora vai”, pensei. No dia seguinte, cataploft.
Irritado, desabafei com algum adulto – meu avô, meu tio, meu pai? Não me recordo – que me explicou por alto o movimento das marés. Enfim, o mar sempre levaria o castelo embora. Aquilo não era negociável. Aquela nova verdade provocou minha revolta de menos de um metro e quarenta, e eu decretei que nunca mais faria nada na areia.
Não sustentei a decisão por muito tempo. Eram tantas horas na praia que, em algum momento, a coisa mais legal que se podia fazer com primos e amigos era erguer um castelo. Sempre tentávamos algo diferente – um novo ornamento, mais ou menos torres, e até cavernas que pudessem abrigar nossos bonecos e deixar as aventuras deles mais arriscadas.
Descobri assim outra felicidade. Quando a família se retirava da praia, a última brincadeira era correr para a água e atravessar o castelo antes que o mar o levasse, demolindo-o como um gigante, numa sensação de onipotência que só décadas depois fui entender por completo. Muitos desejos são lindos de serem realizados; outros, porém, só servem para nos libertar – justamente quando desistimos deles.
25.8.11
JOBS E A 'APPLELOGIA' DA PRIMEIRA NECESSIDADE
Aposentou-se nesta semana Steve Jobs, principal executivo da Apple. Sua biografia na era dos computadores vai desde a popularização dos sistemas operacionais que usam o mouse até o iPhone e o iPad. Como empresário, reposicionou a Apple não só como gigante, mas como promotora de um estilo de vida, revolucionando comunicação, design e absorção de cultura.
A notícia girou as redes sociais, e surgiram inúmeras manifestações de gratidão e louvor a Jobs. Pedro Doria, um dos maiores especialistas brasileiros em internet, afirma que Jobs foi o “criador do nosso mundo”. Seu talento primordial, segundo Doria, era entender como as pessoas queriam ser servidas pela tecnologia. Não é pouca coisa: é a principal característica para ser inventor, publicitário, empresário, ou tudo ao mesmo tempo: sacar o mercado.
Mas o que sempre me espantou foi sua capacidade de transformar lançamentos comerciais em notícia. No mundo todo, a imprensa (e não só a especializada) dedica preciosos minutos a cada versão do iPhone – um acessório que era tratado como item de primeira necessidade. A genialidade de Jobs conseguiu fazer a imprensa cumprir o papel de anunciante mesmo quando o produto tinha apenas relativos saltos de qualidade. Pense em quantas vezes foram jornais e telejornais que o lembraram desses produtos.
A propaganda tem uma capacidade imensa de influenciar hábitos de compra, mas, quando é a imprensa que transforma um artigo comercial em notícia, a leitura é uma só: você realmente precisa ter. E talvez nós, jornalistas, nos tenhamos curvado demais a esses símbolos de status, até pela natureza de nossa profissão.
Se virmos mesmo no iPhone um artigo de primeira necessidade atual, a ponto de ser noticiado, estaremos quase perdoando os vândalos em Londres que invadiram lojas – e aí seriam dois erros de avaliação. Tais produtos são luxos. A constante “applelogia” jornalística dos lançamentos talvez tenha sido publicidade grátis em forma de notícia, reforçando esse assédio rumo ao mundo Apple.
O legado de Jobs nos trouxe conforto e praticidade preciosos, mas, como bom vendedor, criou também necessidades que não tínhamos, alimentando nossas vaidades e ansiedades. Teremos de lidar com isso.
18.8.11
A ÁRVORE DA VIDA E ALGUNS FRUTOS
Malick fala para um mundo que se acostumou a confrontar o que, de fato, é complementar
Novo filme de Terrence Malick e vencedor da Palma de Ouro em Cannes, “A Árvore da Vida” é uma obra imensa, que testa cada uma das mais fundas convicções.
Acompanha-se a formação da consciência de um menino (Hunter McCracken, prestes a fazer história) numa família dos anos 50. Ele é criado entre um pai severo (Brad Pitt), que por amor lhe impõe a lei natural do mais forte, e por uma mãe (Jessica Chastain), que por amor lhe ensina bondades e belezas de fundo religioso. Essas duas forças – natureza e graça – são igualmente golpeadas, sem distinção, pela morte precoce de um dos seus irmãos.
Enquanto uma personalidade se cria, Malick recorda outras questões, a consciência humana sobre o universo e seu papel nele, até o momento em que ambas as evoluções – a do menino e a do planeta – se confundem numa só. O menino se tornará Sean Penn, num mundo corporativo, instalado em arquiteturas arrojadas, e a sensação que se tem é que a evolução não nos tirou do caos. Sai-se do Big Bang para chegar à depressão – e ainda vive-se o peso de ser a espécie condenada a indagar se Deus é o criador ou se é só uma alegoria gasta, que a ciência ainda há de negar por completo.
Ao justapor o criacionismo do Livro de Jó (38:4,7) a imagens darwinistas, Malick vê o curso da evolução do Universo prosseguir no interior do homem. O menino é a evolução de sua família; é quem deve equacionar as lições impostas e pavimentar seu futuro. A evolução da humanidade depende dessas decisões pessoais, surgidas do confronto entre a natureza, que nos quer animais, e a graça, que nos inspira a ser bons. Um combate desigual, mas inesgotável, cheio de belas perguntas.
Como é artista, Malick não oferece uma resposta categórica; sua visão ambiciosa é um sumário das belezas sacras (na música que seleciona e nas imagens de epifanias e redenções) e das científicas (exatas, biológicas e até humanas) e fala para um mundo que se acostumou a confrontar o que, de fato, é complementar.
Sob o denominador comum de Malick, a ciência objetiva explicar os “métodos de Deus”, enquanto a espiritualidade oferece paz e paciência diante do ainda não esclarecido e incentiva a minimizar as injustiças naturais. Juntas, contribuem para o mesmo fim utópico: decifrar a nós mesmos, o como e os porquês.
11.8.11
TIVEMOS OU NÃO UM NOVO 174?
O tiro que acertou o tórax da passageira Lisa Mônica Pereira, de 46 anos, durante sequestro de ônibus no Centro do Rio – bem como todos os outros 15 disparos contados na carcaça do coletivo – foi admitido como erro pelo secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, e pelo comandante geral da PM, Mário Sérgio Duarte. Lisa permanece em estado grave na UTI de um hospital público.
A pergunta agora é: houve um novo 174? A essa questão, o governador Sérgio Cabral responde: há enormes diferenças. Vejamos.
Em 2000, o ônibus 174 foi uma das mais marcantes tragédias do Rio de Janeiro. O ótimo documentário de José Padilha eternizou o horror perpetrado primeiro por Sandro do Nascimento, um ladrão entupido de drogas que já havia sido um sobrevivente da chacina da Candelária; depois pela imperícia de um soldado do Bope, que usou uma arma de baixa precisão para uma ação em que precisão era tudo; e finalmente, pelos PMs, que num ato justiceiro e, sobretudo, corporativo, deram fim a um Sandro dominado, já dentro de um camburão. Em 2000, a jovem Geisa foi a trágica vítima dessa sequência de erros. Hoje, Lisa é quem sofre com um tiro que parece originado dessa série de equívocos assumida pelo Estado.
Situações que envolvem reféns são dos maiores dramas que policiais podem viver. Lidam com a imprevisibilidade do criminoso que enfrentam, e põem à prova toda a qualidade do treinamento que receberam. Com a transmissão ao vivo pela TV, como aconteceu em ambos os casos, é inevitável que a repercussão de erro se multiplique: há a empatia imediata entre a opinião pública e os reféns. Vê-los indefesos sob a mira de várias armas numa situação corriqueira, como voltar para casa de ônibus, faz com que nós exijamos que tudo dê certo.
Respeito Cabral quando diz que a operação difere demais da de 2000 – a começar pelo governador, que não assumiu o comando da ação, conforme fez Garotinho em 2000. Poderes devem ser delegados a especialistas. Onze foram salvos, e nenhum preso foi justiçado.
Infelizmente, ainda temos uma mulher em estado grave num hospital, devido a um equívoco policial. E há uma decisão de não recolher todas as armas empregadas, o que soa ao pior do corporativismo. Portanto, seria de bom tom admitir que o que ocorreu no ônibus da Viação Jurema ainda guarda, no cerne dos fatos, semelhanças demais com o fatídico 174.
4.8.11
O DIA DO ORGULHO DE LAVAR UMA ROUPA
Agora vai. São Paulo, motor e radar desta Nação, locomotiva do progresso e dotada de uma Câmara de Vereadores antenada, São Paulo aprovou a criação do fabuloso Dia Paulistano do Orgulho Heterossexual.
Acredito que cada paulistano, vivo ou morto, deve agradecer à sua divindade preferida por este momento. Tem-se ali, naquela metrópole, vereadores que lutam com afinco por uma sociedade mais justa, humana e igualitária.
Orgulha-me cada vez mais que este país hiperdesenvolvido, este mastodonte tropical, esta verdadeira Suécia em português, tenha resolvido seus principais problemas estruturais, sua desigualdade social e o analfabetismo regado a água e farinha. Finalmente podemos dedicar nossas preciosas legislaturas a estes debates inteligentes, gerados por figuras de proa, como o vereador Carlos Apolinário, luz e glória da andante cavalaria do DEM. Seus eleitores regozijam-se totalmente representados, imagino, esperando só que o prefeito Kassab sancione.
O coração paulistano já pode se ufanar de contar com os melhores restaurantes, os engarrafamentos mais duradouros, o ar mais poluído e o terceiro domingo de dezembro, que será reservado ao orgulho de ser um homem que gosta de mulher e vice-versa. Nada mais falta.
O emocionante é que São Paulo fica apta para outros debates igualmente importantes e onipresentes, como o beijo gay em novela das oito – essa conquista sociocultural que ainda nos falta, maior que o Oscar, maior que o Nobel.
Sobretudo, São Paulo poderá tratar da questão que realmente me comove no Brasil: a gritante falta de roupa para lavar nos Legislativos.
No país com que sonho, todo parlamentar teria uma trouxa de roupa para lavar, enviada por eleitores. Gosto da ideia de que seja semanal. Ao receber a roupa suja, o político conversaria com sua base eleitoral sobre os projetos que encaminhou ou pretende encaminhar ao plenário. Semana após semana, com as roupas de molho no tanque, o eleitor acompanharia o mandato do homem que elegeu como representante e poderia lhe dizer como sua vida melhorou com a ação do legislador.
Em tempo: não conheço um único hétero paulistano orgulhoso do dia criado por Dom Apolinário. Mas aguardo ansioso as fotos da passeata do terceiro domingo de dezembro.
Agora vai. São Paulo, motor e radar desta Nação, locomotiva do progresso e dotada de uma Câmara de Vereadores antenada, São Paulo aprovou a criação do fabuloso Dia Paulistano do Orgulho Heterossexual.
Acredito que cada paulistano, vivo ou morto, deve agradecer à sua divindade preferida por este momento. Tem-se ali, naquela metrópole, vereadores que lutam com afinco por uma sociedade mais justa, humana e igualitária.
Orgulha-me cada vez mais que este país hiperdesenvolvido, este mastodonte tropical, esta verdadeira Suécia em português, tenha resolvido seus principais problemas estruturais, sua desigualdade social e o analfabetismo regado a água e farinha. Finalmente podemos dedicar nossas preciosas legislaturas a estes debates inteligentes, gerados por figuras de proa, como o vereador Carlos Apolinário, luz e glória da andante cavalaria do DEM. Seus eleitores regozijam-se totalmente representados, imagino, esperando só que o prefeito Kassab sancione.
O coração paulistano já pode se ufanar de contar com os melhores restaurantes, os engarrafamentos mais duradouros, o ar mais poluído e o terceiro domingo de dezembro, que será reservado ao orgulho de ser um homem que gosta de mulher e vice-versa. Nada mais falta.
O emocionante é que São Paulo fica apta para outros debates igualmente importantes e onipresentes, como o beijo gay em novela das oito – essa conquista sociocultural que ainda nos falta, maior que o Oscar, maior que o Nobel.
Sobretudo, São Paulo poderá tratar da questão que realmente me comove no Brasil: a gritante falta de roupa para lavar nos Legislativos.
No país com que sonho, todo parlamentar teria uma trouxa de roupa para lavar, enviada por eleitores. Gosto da ideia de que seja semanal. Ao receber a roupa suja, o político conversaria com sua base eleitoral sobre os projetos que encaminhou ou pretende encaminhar ao plenário. Semana após semana, com as roupas de molho no tanque, o eleitor acompanharia o mandato do homem que elegeu como representante e poderia lhe dizer como sua vida melhorou com a ação do legislador.
Em tempo: não conheço um único hétero paulistano orgulhoso do dia criado por Dom Apolinário. Mas aguardo ansioso as fotos da passeata do terceiro domingo de dezembro.
28.7.11
Santos 4x5 Fla - Para lembrar que bola é coisa séria
Há tempos que eu não escrevo sobre futebol aqui – o artigo em que comparei a Copa de 2014 ao cavalo de Troia, convenhamos, não vale. A suspeita de que o Santos 4x5 Flamengo da última quarta pode ter sido o jogo mais emocionante que já vi me fez abandonar Amy Winehouse, a Noruega e o casamento gay. Futebol, como se sabe, é assunto extremamente sério. Sou da opinião de que o futebol concedeu ao brasileiro a permissão de sonhar que o país tinha jeito.
O Santos 4x5 Flamengo da última quarta é parente de um futebol que, por ter 32 anos, não vi: aquele dos ataques generosos e das defesas quixotescas dos anos 50 e 60, de Pelé, Garrincha, Telê. Tem um pé na pelada e outro na epopeia. Exultante, meu pai me ligou dizendo que o Flamengo “tinha atravessado o mar Vermelho!”. Não sei dizer exatamente quem seria Moisés e os israelitas nem quem seriam os egípcios e o mar Vermelho, mas entendo perfeitamente o que ele quis dizer.
Raramente se vê um time reverter uma desvantagem de 3 a 0. Em 2000, o Vasco conseguiu isso numa final de Mercosul sobre o Palmeiras, na noite em que, com três gols, um Romário possuído suplantou até mesmo a expulsão de seu colega Júnior Baiano e levou a taça a São Januário. Não tenho muitos outros exemplos na ponta da língua.
A partida foi tão generosa em dramaticidade que, além da profusão de gols, teve pênalti perdido (Elano) e gol inacreditavelmente desperdiçado (Deivid, trocando passes consigo mesmo). Aliás, teve até sequestro de pai.
E um conflito de gerações. De um lado, Neymar, que decreta a volta da escravidão aos zagueiros, submetendo-os às suas vontades improvisadas ao cúmulo de humilhar um beque tão cavalheiro quanto Ronaldo Angelim – que merece, mais do que o prêmio Fair Play da Fifa, uma indicação ao Nobel da Paz.
Do outro, Ronaldinho. Se não é mais o tirano dos campos que um dia foi (como Neymar hoje é), ainda sabe fazer uma barreira levitar, a fim de dar à bola o mais curto atalho para o gol. Aos 31 anos, o gaúcho ainda reserva algumas façanhas por realizar. Desde ontem, ele também é o cara que ensinou à nova geração de craques e torcedores a reação impossível, com arte nos pés e raça nas vontades.
Não é sempre que se pode aprender uma lição dessas. Que Ganso e Neymar guardem isso para 2014.
22.7.11
A BELEZA QUE SÓ SE ENTENDE NA VOZ
[Destak, 22 de julho]
A verdade é que a parte mais bonita do corpo da mulher é a voz. Não sei se dou atenção demasiada às circunstâncias musicais da vida, mas me parece extremamente difícil amar alguém cuja voz parece fora do tom em que se afina o coração.
Não é questão de ser mais ou menos aguda, ou mais ou menos grave. Tanto o mais estridente flautim quanto o mais solene violoncelo têm sua música particular e podem ser extremamente agradáveis ou provocantes; depende de como se maneja, e a voz funciona igualmente.
E não estou falando de cantoras. Falo daquela voz que ao telefone hipnotiza, que sabe nos acordar quando os olhos ainda estão fechados e que consegue derreter as geleiras da alma mesmo quando discorda de nós ou aponta nossos equívocos com severidade.
Há uma extensão clara disso no nosso mundo cada vez mais verbal, que às vezes não é percebida: mesmo numa mensagem de texto por celular, ou numa conversa em chat, há uma voz que se ouve nos olhos de quem lê.
Há quem diga que escrever bem é sexy, e nesse caso os critérios variam. Não vou dizer quais são os meus, mas tenho certeza de que isso tem a ver com a possibilidade de imaginar a pessoa dizendo isso, a expressão alheia que nos vem à mente quando a lemos.
Ainda assim, escrever é um ato pensado. Há sempre um tempo que permite hesitar, reconsiderar ou mesmo elaborar a melhor resposta. A voz padece por ser um veículo da espontaneidade. É possível perguntar ao celular se "está tudo bem" apenas por sentir que a voz do outro lado está estranha e nos preocupa. A quilômetros de distância, ela ainda é capaz de denunciar o mais triste dos semblantes.
E sempre há o tempero dos sotaques, que nada mais são do que essa melodia da fala que aprendemos quando queremos fazer parte de algum grupo de falantes. No Rio, ela se assemelha a uma ladeira que termina numa freada harmoniosa; em São Paulo, vem embalada em consoantes secas e uma nasalidade que cai de paraquedas; no Sul, ela repete uma frequência que aponta várias vezes para cima; e, no Nordeste, quem fala não tem nada a esconder.
[Destak, 22 de julho]
A verdade é que a parte mais bonita do corpo da mulher é a voz. Não sei se dou atenção demasiada às circunstâncias musicais da vida, mas me parece extremamente difícil amar alguém cuja voz parece fora do tom em que se afina o coração.
Não é questão de ser mais ou menos aguda, ou mais ou menos grave. Tanto o mais estridente flautim quanto o mais solene violoncelo têm sua música particular e podem ser extremamente agradáveis ou provocantes; depende de como se maneja, e a voz funciona igualmente.
E não estou falando de cantoras. Falo daquela voz que ao telefone hipnotiza, que sabe nos acordar quando os olhos ainda estão fechados e que consegue derreter as geleiras da alma mesmo quando discorda de nós ou aponta nossos equívocos com severidade.
Há uma extensão clara disso no nosso mundo cada vez mais verbal, que às vezes não é percebida: mesmo numa mensagem de texto por celular, ou numa conversa em chat, há uma voz que se ouve nos olhos de quem lê.
Há quem diga que escrever bem é sexy, e nesse caso os critérios variam. Não vou dizer quais são os meus, mas tenho certeza de que isso tem a ver com a possibilidade de imaginar a pessoa dizendo isso, a expressão alheia que nos vem à mente quando a lemos.
Ainda assim, escrever é um ato pensado. Há sempre um tempo que permite hesitar, reconsiderar ou mesmo elaborar a melhor resposta. A voz padece por ser um veículo da espontaneidade. É possível perguntar ao celular se "está tudo bem" apenas por sentir que a voz do outro lado está estranha e nos preocupa. A quilômetros de distância, ela ainda é capaz de denunciar o mais triste dos semblantes.
E sempre há o tempero dos sotaques, que nada mais são do que essa melodia da fala que aprendemos quando queremos fazer parte de algum grupo de falantes. No Rio, ela se assemelha a uma ladeira que termina numa freada harmoniosa; em São Paulo, vem embalada em consoantes secas e uma nasalidade que cai de paraquedas; no Sul, ela repete uma frequência que aponta várias vezes para cima; e, no Nordeste, quem fala não tem nada a esconder.
19.7.11
Cold, poema da escocesa Carol-Ann Duffy, foi publicado sem tradução na capa da última edição do Prosa & Verso de O Globo, e acabou me provocando. O resultado é este, e o original em inglês vai mais abaixo.
Frio
Era tão fria a bola que nas mãos chorava
neve, e que ao rolar crescia pela neve até
que nela eu me sentasse, olhando para casa,
onde, num quarto frio de janelas cegas
de gelo, meus suspiros no ar se desnudavam.
Frio também no abraço que deu forma ao Homem
de Neve, e em meus dedões que ardiam frios dentro
das botas invernais; mamãe que me gritava
"Sai do frio!", com frias mãos de descascar
batatas que esperaram enquanto me beijava
cada bochecha fria e o meu frio nariz.
Mas nada frio como a noite fevereira
em que, nem jovem nem idosa, ela jazia,
e a testa aos lábios deu-me a tradução de "fria" .
OBS: O poema obrigou-me a empregar doze sílabas em cada verso (medida igualmente usada pela poeta escocesa), e rima no par final de versos. A gente abre mão de muita coisa quando traduz sem "liberdade". É mais uma revelação incompleta de intenções originais, além das escolhas que nos são mais caras. Espero que gostem.
Aqui, o original, com os direitos reservados.
Cold
It felt so cold, the snowball which wept in my hands,
and when I rolled it along in the snow, it grew
till I could sit on it, looking back at the house,
where it was cold when I woke in my room, the windows
blind with ice, my breath undressed itself on the air.
Cold, too, embracing the torso of snow which I lifted up
in my arms to build a snowman, my toes, burning, cold
in my winter boots; my mother’s voice calling me in
from the cold. And her hands were cold from peeling
then dipping potatoes into a bowl, stopping to cup
her daughter’s face, a kiss for both cold cheeks, my cold nose.
But nothing so cold as the February night I opened the door
in the Chapel of Rest where my mother lay, neither young, nor old,
where my lips, returning her kiss to her brow, knew the meaning of cold.
14.7.11
A lenda do cavalo da Troia tropical
Houve certa vez uma Troia tropical. Um país em desenvolvimento, historicamente marginal, vitimado por uma baixa estima incongruente com sua grandeza territorial e que tinha por principal orgulho... a sua cavalaria. Um dia, em seu litoral, foi deixado um gigantesco cavalo de madeira, que maravilhou a população.
No casco da estátua, lia-se: “Garantia até julho de 2014, sob condições específicas”.
Ciente da clamorosa aprovação do povo, o rei bancou o presente, argumentando que “o cavalo é a paixão nacional”, que Troia merecia ter aquele orgulho e que o monumento geraria empregos e melhoraria muito o país em termos de estrutura. Até os aeroportos seriam ampliados para suportar o transporte do enorme animal. Estábulos em todo o país seriam reformados e novas estrebarias erguidas, e haveria investimento estrangeiro em inúmeras áreas. Troia estaria no centro das atenções do mundo.
Algumas sacerdotisas profetizaram, porém, que o cavalo talvez fosse um “presente de grego”. Já havia acontecido na África, onde a passagem de um equino semelhante em 2010 deixou vários elefantes brancos de vergonha, num rastro de gastos excessivos.
Em Troia, a obra de um estábulo histórico perto de um rio foi orçada em R$ 1 bilhão. Já na primeira cidade que receberia o cavalo, erguer-se-ia às pressas uma estrebaria privada que era sonho do rei. Foi presenteada com isenção de impostos, o que gerou chiadeira da oposição.
O rei não deu bola. “Deixa essas Cassandras, elas sempre falam”. Aceitou as condições dos exigentes tratadores do bicho e, anos depois, deixou a rainha para tocar as obras, que já andavam atrasadas como nunca antes. Fora outros problemas: cortes no Orçamento, concessões de ministérios aqui e ali para partidos que garantiam a governabilidade no Parlamento. Também a inflação batia as portas e o custo de vida aumentava. Morar em Troia tinha ficado bem mais caro, em parte devido ao que alguns analistas batizaram de “custo hípico”.
E nos campos de Troia, conviviam tanto a esperança de que a Cavalaria fizesse bom papel na festa quanto o temor de que, de dentro do cavalo, saísse um furioso Exército de contas. Que jamais se pagariam sem sangria pública.
Houve certa vez uma Troia tropical. Um país em desenvolvimento, historicamente marginal, vitimado por uma baixa estima incongruente com sua grandeza territorial e que tinha por principal orgulho... a sua cavalaria. Um dia, em seu litoral, foi deixado um gigantesco cavalo de madeira, que maravilhou a população.
No casco da estátua, lia-se: “Garantia até julho de 2014, sob condições específicas”.
Ciente da clamorosa aprovação do povo, o rei bancou o presente, argumentando que “o cavalo é a paixão nacional”, que Troia merecia ter aquele orgulho e que o monumento geraria empregos e melhoraria muito o país em termos de estrutura. Até os aeroportos seriam ampliados para suportar o transporte do enorme animal. Estábulos em todo o país seriam reformados e novas estrebarias erguidas, e haveria investimento estrangeiro em inúmeras áreas. Troia estaria no centro das atenções do mundo.
Algumas sacerdotisas profetizaram, porém, que o cavalo talvez fosse um “presente de grego”. Já havia acontecido na África, onde a passagem de um equino semelhante em 2010 deixou vários elefantes brancos de vergonha, num rastro de gastos excessivos.
Em Troia, a obra de um estábulo histórico perto de um rio foi orçada em R$ 1 bilhão. Já na primeira cidade que receberia o cavalo, erguer-se-ia às pressas uma estrebaria privada que era sonho do rei. Foi presenteada com isenção de impostos, o que gerou chiadeira da oposição.
O rei não deu bola. “Deixa essas Cassandras, elas sempre falam”. Aceitou as condições dos exigentes tratadores do bicho e, anos depois, deixou a rainha para tocar as obras, que já andavam atrasadas como nunca antes. Fora outros problemas: cortes no Orçamento, concessões de ministérios aqui e ali para partidos que garantiam a governabilidade no Parlamento. Também a inflação batia as portas e o custo de vida aumentava. Morar em Troia tinha ficado bem mais caro, em parte devido ao que alguns analistas batizaram de “custo hípico”.
E nos campos de Troia, conviviam tanto a esperança de que a Cavalaria fizesse bom papel na festa quanto o temor de que, de dentro do cavalo, saísse um furioso Exército de contas. Que jamais se pagariam sem sangria pública.
1.7.11
Você sabe quanto custa R$ 1 bilhão?
[publicada no Destak de 30.jun]
O brasileiro médio dificilmente vai ter contato com R$ 1 bilhão. Nem mesmo os mais afortunados acertadores de loterias sabem dimensionar. Bilhões são para bancos, empreiteiras e valores relacionados a balanços e orçamentos dos governos. Dá para dizer que é raro haver R$ 1 bilhão sem governo no meio. Vou além: o bilhão de reais é quase uma unidade de grandeza exclusiva para dinheiro de gente que se relaciona com governos.
Um Maracanã reformado custa R$ 1 bilhão. Pronto, já temos um sinônimo para a grandeza.
Lembram-se de quando uma grande passeata no Centro do Rio gritou pelos royalties do petróleo? A conta que se trombeteava em 2010 era a de que, sem os dividendos do ouro negro, o Estado perderia R$ 7,2 bilhões anualmente. Segundo o governador Sérgio Cabral, essa seca faria o Rio literalmente "quebrar".
Sem os royalties, em quatro anos - tempo que dura um mandato estadual - o Rio teria perdido R$ 28,8 bilhões. E assim "quebraria".
Pois bem. Recentemente, outra conta que "quebraria o Estado" foi feita, a respeito do aumento dos bombeiros. Caso fosse concedido o piso de R$ 2 mil que a categoria inicialmente pleiteava - e que seria obrigatoriamente estendido aos policiais -, o impacto nas contas do Estado seria de R$ 4,7 bilhões por ano.
Em quatro anos - sempre pensando em um mandato - R$ 18,8 bilhões seriam gastos com as forças. Somados aos R$ 28,8 bilhões dos royalties "perdidos", uma gestão que "quebraria o Estado" teria perdido R$ 47,6 bilhões.
Por que uso quatro anos? Porque foi de 2007 a 2010 - primeira gestão de Cabral - que o Rio abriu mão de R$ 50 bilhões em impostos para beneficiar empresas: desde setores estratégicos, como a fábrica da Michelin, até uma famosa rede de cabeleireiros e duas termas. Esses R$ 50 bilhões são mais da metade do que Cabral arrecadou em impostos no período: R$ 97 bilhões, segundo a Folha de S.Paulo.
Renúncia fiscal é ferramenta para o progresso, quando bem-usada. Mas, se não for aplicada com rigor e sentido estratégico, pode quebrar um Estado. E aí surgem 1 bilhão de desculpas.
[publicada no Destak de 30.jun]
O brasileiro médio dificilmente vai ter contato com R$ 1 bilhão. Nem mesmo os mais afortunados acertadores de loterias sabem dimensionar. Bilhões são para bancos, empreiteiras e valores relacionados a balanços e orçamentos dos governos. Dá para dizer que é raro haver R$ 1 bilhão sem governo no meio. Vou além: o bilhão de reais é quase uma unidade de grandeza exclusiva para dinheiro de gente que se relaciona com governos.
Um Maracanã reformado custa R$ 1 bilhão. Pronto, já temos um sinônimo para a grandeza.
Lembram-se de quando uma grande passeata no Centro do Rio gritou pelos royalties do petróleo? A conta que se trombeteava em 2010 era a de que, sem os dividendos do ouro negro, o Estado perderia R$ 7,2 bilhões anualmente. Segundo o governador Sérgio Cabral, essa seca faria o Rio literalmente "quebrar".
Sem os royalties, em quatro anos - tempo que dura um mandato estadual - o Rio teria perdido R$ 28,8 bilhões. E assim "quebraria".
Pois bem. Recentemente, outra conta que "quebraria o Estado" foi feita, a respeito do aumento dos bombeiros. Caso fosse concedido o piso de R$ 2 mil que a categoria inicialmente pleiteava - e que seria obrigatoriamente estendido aos policiais -, o impacto nas contas do Estado seria de R$ 4,7 bilhões por ano.
Em quatro anos - sempre pensando em um mandato - R$ 18,8 bilhões seriam gastos com as forças. Somados aos R$ 28,8 bilhões dos royalties "perdidos", uma gestão que "quebraria o Estado" teria perdido R$ 47,6 bilhões.
Por que uso quatro anos? Porque foi de 2007 a 2010 - primeira gestão de Cabral - que o Rio abriu mão de R$ 50 bilhões em impostos para beneficiar empresas: desde setores estratégicos, como a fábrica da Michelin, até uma famosa rede de cabeleireiros e duas termas. Esses R$ 50 bilhões são mais da metade do que Cabral arrecadou em impostos no período: R$ 97 bilhões, segundo a Folha de S.Paulo.
Renúncia fiscal é ferramenta para o progresso, quando bem-usada. Mas, se não for aplicada com rigor e sentido estratégico, pode quebrar um Estado. E aí surgem 1 bilhão de desculpas.
6.6.11
2.6.11
A matemática da vida em Fukushima
Há no Japão um grupo de 200 aposentados, em sua maioria engenheiros, que se oferece para substituir trabalhadores mais jovens num perigoso trabalho: a manutenção da usina nuclear de Fukushima, que foi seriamente afetada pelo grande terremoto de três meses atrás. Os reparos envolvem altos níveis de radioatividade cancerígena.
Em entrevista à BBC, o voluntário Yasuteru Yamada, que tem 72 anos e negocia com o reticente governo japonês e a companhia, usa uma lógica tão simples quanto assombrosa.
“Em média, devo viver mais uns 15 anos. Já um câncer vindo da radiação levaria de 20 a 30 anos para surgir. Logo, nós que somos mais velhos temos menos risco de desenvolver câncer”, afirma Yamada.
É arrepiante. Na contramão do individualismo atual – e lidando de uma maneira absolutamente realista em relação à vida e à morte –, sexagenários e septuagenários querem dar uma última contribuição: ser úteis em seus últimos anos e permitir que alguns jovens possam chegar às idades deles com saúde e disposição semelhantes.
O que mais impressiona em toda a história é a matemática da vida. A morte não é para eles um problema a ser solucionado – ou talvez corrigido, pela hipótese mística da vida eterna que medicina e biologia tentam encampar e da qual as revistas de boa saúde tentam nos convencer; a morte é, de fato, a constante da equação.
Nada que o mundo ocidental não conheça. O filósofo alemão Georg Friedrich Hegel (1770-1831) certa vez definiu “mestre” como alguém desapegado da vida a ponto de enfrentar a morte, enquanto “servo” seria um escravo do desejo de continuar vivo – e que obedeceria mais às regras que lhe garantissem a sobrevida. Em consequência, o servo anula sua vontade de transformar o mundo e a si mesmo.
Criados numa sociedade de consumo, corremos o risco de levar essa escravidão às últimas, defendendo a boa saúde e os confortos com muito mais afinco do que aquilo que podemos fazer por nós e pelos outros enquanto ainda gozamos dela.
Os senhores do Japão ensinam que a morte é a hora em que podemos continuar a existir na memória das pessoas – uma oportunidade que, para mim, eles não perdem mais.
Há no Japão um grupo de 200 aposentados, em sua maioria engenheiros, que se oferece para substituir trabalhadores mais jovens num perigoso trabalho: a manutenção da usina nuclear de Fukushima, que foi seriamente afetada pelo grande terremoto de três meses atrás. Os reparos envolvem altos níveis de radioatividade cancerígena.
Em entrevista à BBC, o voluntário Yasuteru Yamada, que tem 72 anos e negocia com o reticente governo japonês e a companhia, usa uma lógica tão simples quanto assombrosa.
“Em média, devo viver mais uns 15 anos. Já um câncer vindo da radiação levaria de 20 a 30 anos para surgir. Logo, nós que somos mais velhos temos menos risco de desenvolver câncer”, afirma Yamada.
É arrepiante. Na contramão do individualismo atual – e lidando de uma maneira absolutamente realista em relação à vida e à morte –, sexagenários e septuagenários querem dar uma última contribuição: ser úteis em seus últimos anos e permitir que alguns jovens possam chegar às idades deles com saúde e disposição semelhantes.
O que mais impressiona em toda a história é a matemática da vida. A morte não é para eles um problema a ser solucionado – ou talvez corrigido, pela hipótese mística da vida eterna que medicina e biologia tentam encampar e da qual as revistas de boa saúde tentam nos convencer; a morte é, de fato, a constante da equação.
Nada que o mundo ocidental não conheça. O filósofo alemão Georg Friedrich Hegel (1770-1831) certa vez definiu “mestre” como alguém desapegado da vida a ponto de enfrentar a morte, enquanto “servo” seria um escravo do desejo de continuar vivo – e que obedeceria mais às regras que lhe garantissem a sobrevida. Em consequência, o servo anula sua vontade de transformar o mundo e a si mesmo.
Criados numa sociedade de consumo, corremos o risco de levar essa escravidão às últimas, defendendo a boa saúde e os confortos com muito mais afinco do que aquilo que podemos fazer por nós e pelos outros enquanto ainda gozamos dela.
Os senhores do Japão ensinam que a morte é a hora em que podemos continuar a existir na memória das pessoas – uma oportunidade que, para mim, eles não perdem mais.
27.5.11
E agora a solidão tornou-se doença
A chamada na capa da Folha de S.Paulo me causou calafrios: "Solidão é doença e vivemos uma epidemia, diz estudo". Sempre entendi que a solidão era uma circunstância, uma consequência ou uma opção. Nunca me passou pela cabeça que fosse um estado patologicamente anormal e demandasse uma "cura".
Pensei nos vários solitários por opção que a partir de agora necessitavam de ajuda médica - haviam feito uma opção tão "suicida" quanto a de quem... fuma, para algumas cabeças mais radicais. Pensei nos inúmeros hipocondríacos que poderiam se juntar a qualquer pessoa para se prevenir. E pensei em como o século 21 anda babaca. Felizmente, quando lida, a matéria negava parcialmente sua chamada.
A causa da matéria é o livro Solidão - a Natureza Humana e a Necessidade de Vínculo Social (no Brasil, ed. Record), que destrincha os estudos sobre o tema feitos ao logo de 20 anos pelo psicólogo americano John Cacioppo, da Universidade de Chicago.
Tenho altas preocupações com esses estudos. Não que não sejam sérios - e este parece sê-lo - ou que as revelações não sejam aproveitáveis.
Mas concluir que a solidão "é um sinal de que algo não vai bem e que precisamos reforçar os vínculos sociais", como disse Colacioppo ao repórter da Folha, é sustentar que o aspecto do bem-estar biológico deve comandar toda e qualquer decisão da sua vida. Se a solidão é um estado que, como mostram os dados, pode levar ao aumento de doenças cardiovasculares, estresse e distúrbios de sono, é melhor então estar mal acompanhado?
A encruzilhada da ciência entre o biológico e o comportamental é um radar extremamente necessário, que desenvolveu alívios químicos a pessoas com depressão, ansiedade, insônia e outros transtornos que antigamente podiam passar despercebidos ou ser encarados como traços imutáveis da personalidade.
No entanto, há de se ter cuidado com esforços de normatizar a existência humana e seu vasto leque de sensações, em busca de um ideal de bem-estar. A solidão, como a tristeza, é das situações a que estamos sujeitos - primeiro, por estarmos vivos; segundo, por nossa cultura individualizante. Mas pode ser uma experiência absurdamente enriquecedora, ou uma opção de vida. Se sempre padeceremos, que ao menos evitem-se as precauções tolas.
A chamada na capa da Folha de S.Paulo me causou calafrios: "Solidão é doença e vivemos uma epidemia, diz estudo". Sempre entendi que a solidão era uma circunstância, uma consequência ou uma opção. Nunca me passou pela cabeça que fosse um estado patologicamente anormal e demandasse uma "cura".
Pensei nos vários solitários por opção que a partir de agora necessitavam de ajuda médica - haviam feito uma opção tão "suicida" quanto a de quem... fuma, para algumas cabeças mais radicais. Pensei nos inúmeros hipocondríacos que poderiam se juntar a qualquer pessoa para se prevenir. E pensei em como o século 21 anda babaca. Felizmente, quando lida, a matéria negava parcialmente sua chamada.
A causa da matéria é o livro Solidão - a Natureza Humana e a Necessidade de Vínculo Social (no Brasil, ed. Record), que destrincha os estudos sobre o tema feitos ao logo de 20 anos pelo psicólogo americano John Cacioppo, da Universidade de Chicago.
Tenho altas preocupações com esses estudos. Não que não sejam sérios - e este parece sê-lo - ou que as revelações não sejam aproveitáveis.
Mas concluir que a solidão "é um sinal de que algo não vai bem e que precisamos reforçar os vínculos sociais", como disse Colacioppo ao repórter da Folha, é sustentar que o aspecto do bem-estar biológico deve comandar toda e qualquer decisão da sua vida. Se a solidão é um estado que, como mostram os dados, pode levar ao aumento de doenças cardiovasculares, estresse e distúrbios de sono, é melhor então estar mal acompanhado?
A encruzilhada da ciência entre o biológico e o comportamental é um radar extremamente necessário, que desenvolveu alívios químicos a pessoas com depressão, ansiedade, insônia e outros transtornos que antigamente podiam passar despercebidos ou ser encarados como traços imutáveis da personalidade.
No entanto, há de se ter cuidado com esforços de normatizar a existência humana e seu vasto leque de sensações, em busca de um ideal de bem-estar. A solidão, como a tristeza, é das situações a que estamos sujeitos - primeiro, por estarmos vivos; segundo, por nossa cultura individualizante. Mas pode ser uma experiência absurdamente enriquecedora, ou uma opção de vida. Se sempre padeceremos, que ao menos evitem-se as precauções tolas.
20.5.11
EFEITOS DE UMA CANÇÃO DO EXÍLIO
O carioca vai caindo aos poucos na real a respeito de ter virado a capital do mundo na década atual. Antes a preocupação, porém, era macro: o custo bilionário das obras, o superfaturamento, os elefantes brancos. Tudo alarmante, mas ainda distante do cidadão comum, que dormia tranquilo.
A conta, no entanto, começa a chegar em sinais mais perceptíveis. A alta dos imóveis é assombrosa em várias regiões da cidade, e é cada vez mais comum ver gente que morava de aluguel na zona sul se mudando para bairros mais afastados porque os donos dos imóveis pedem o dobro nas renegociações.
Para muitos, uma canção do exílio, uma vez que essa alta dos aluguéis visa principalmente ao maior fluxo de turistas. O proprietário prefere alugar por temporada, modalidade em que ganha mais dinheiro, e há demanda para jogar os preços nas alturas, como pedir R$ 2,7 mil por um quarto e sala de 50 metros quadrados no primeiro andar no Leblon.
Essa mudança na demografia da cidade pode ser bastante interessante nos próximos anos: com uma zona sul ainda mais turística e cara, pode-se ter uma alteração no comportamento de um tipo de habitante que costumava se entricheirar na zona sul e dali não saía, a não ser sob protesto. Ir até a Barra? Um horror. Zona oeste? Terra de Marlboro. Zona norte? Perigoso.
Muitos desses preconceitos podem estar diante de uma diminuição a fórceps, uma vez que o principado do sul será cada vez menos da classe média nativa. Os especialistas não veem nessas altas uma bolha - ao contrário, encara-se a escalada dos preços dos imóveis como uma constante de década, que poucos ganhos conseguirão acompanhar.
Pode ser uma grande chance de ver um Rio mais preocupado com os Rios que não aparecem em cartões-postais. Que vai se ver obrigado a exigir do poder público a mesma quantidade de privilégios a que estava acostumado nos bairros onde se habituou a morar.
Por isso, é necessário um olhar muito interessado da população às metas de transportes, sejam elas vias expressas, sejam reordenamentos de ônibus, sejam extensões do metrô e, sobretudo, uma atenção rigorosa com o desenvolvimento das ações nas UPPs. Todo carioca deve manter esses movimentos no radar, porque a cidade que lhe pertence hoje poderá ser outra.
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