22.3.11

POR QUE ALL AND EVERYONE, DE PJ HARVEY, É UM MUSICAÇO


Há certos momentos em que o poeta (ou, para usar uma palavra menos hã, "cafona", um letrista), parece simplesmente tomado de algum espírito. Poetas e profetas já foram vistos com um certo parentesco. "Vate" é uma palavra que pode ser sinônimo das duas ocupações.

"All and Everyone", faixa 5 do disco "Let England Shake", de PJ Harvey, cantora de cuja obra nunca me aproximei, é desses lampejos. O tema que ela aborda é a batalha de Gallipoli (ou Dardanelles), em 1915, Primeira Guerra Mundial, em que os turcos resistiram a um cerco de aliados ingleses e franceses, que tentavam tomar Constantinopla sob um sol inclemente de verão do Norte. Na soma de mortos dos dois lados, a história conta algo em torno de 392 mil. Mas, fora alguns topônimos citados na canção, como Bolton's Ridge, você não precisa se preocupar com isso.



É uma canção apocalíptica. PJ Harvey anuncia, como num despertar, que "a Morte estava estava em todos os lugares", sustentada por uma harmonia tocada em ritmo quase marcial. É um terror praticamente visual, dada a tensão nos acordes e o tom hipnótico com que PJ canta. Soa como um Cassandra, anunciando a queda iminente de Troia nas visões que teve durante o sono.

São imagens raras, inacreditáveis para a música pop, e assombrosas mesmo quando avaliadas sem a melodia, e ainda quando traduzidas.

"Quando você enrolava um fumo,
Ou contava uma piada,
Ela (A Morte) estava na gargalhada
E na água potável".

"A Morte se pendurava na fumaça e se agarrava
Aos 400 acres de uma inútil orla.
Um banco de terra pingava morte
agora, e agora e agora."

E, por fim, meu dístico preferido:

"A Morte estava no Sol que nos mirava,
fixando seus olhos em todos."

Não é coisa fácil, e sustenta-se por si. Com o arranjo econômico, essa letra nos põe diante do abismo, num crescendo de medo. É uma canção dramática, cinematográfica, extraordinária, com uma incrível divisão de sílabas. Reparem no impacto da antecipação da palavra negritada.

"Death was in the ancient fortress,
shelled by a million bullets
from gunners, waiting in the copses"

E ainda usa um surpreendente recurso de quebra de ritmo, que parece abrir fogo contra nossos ouvidos neste momento; "bank" quase vira "bang".

"Death hung in the smoke and clung
to 400 acres of useless beachfront.
bank of red earth, dripping down death
now, and now, and now"

(Para nós que falamos português e entendemos o inglês como uma língua universal, não deixo de pensar que certas frases só poderão ser aceitas em inglês. Em português, estaríamos diante da grosseira visão que PJ nos proporciona e não poderíamos encará-la. Pense num artista nacional que pudesse cantar esses versos sem soar caricato ou impostor. Às vezes, a minha sensação é que a canção em português do Brasil não tem salvo-conduto para adentrar certos terrenos, ou ainda não chegou alguém com credibilidade suficiente para alcançá-los.)

Mas vai além. Leio esses versos de PJ Harvey e não consigo deixar de relacioná-los com a Líbia e no tsunami japonês, para citar duas orlas que vieram a sangrar recentemente. É nesses lances do Acaso que a poesia fica ainda mais impressionante: quando profetiza. Elimine-se o cunho histórico inglês que Polly Jean quis dar ao seu disco e mergulhe-se nessa marcha, em que o sol impossível é simbolizado no momento de relativa tranquilidade, como se a música exibisse um cansaço em seu caminhar corajoso ao dizer:

"As we, advancing in the sun".