29.12.11

UMA RETROSPECTIVA PESSOAL DE 2011

Elegeram o manifestante, do Egito a Wall Street, o homem do ano. Disseram que “Recanto”, o disco da Gal composto por Caetano Veloso, foi o melhor do ano. Afirmaram que o Brasil vai ultrapassar o Reino Unido na lista de maiores economias no mundo, a reboque da crise financeira que faz a Europa reduzir seu passo ao ritmo do cágado. Amy Winehouse, enfim, descansa. Steve Jobs também.


Ainda olho para trás e, não sei por quê, de tudo que marcou o ano no noticiário, o que mais me martela ainda é o massacre perpetrado por um maníaco na escola municipal de Realengo, zona oeste do RIo, no dia 7 de abril.  Parece ser o primeiro fato que me vem à mente quando tento me lembrar de tudo que aconteceu no mundo em 2011. Ali foram mortas 12 crianças.


Outras foram salvas pelo sargento Márcio Alves, da Polícia Militar, que não matou Wellington Menezes de Oliveira; com sangue frio, acertou-lhe uma bala no abdômen. Wellington sobreviveria, se não tivesse atirado contra sua própria cabeça em seguida.


Naquela dia, voltei diferente para casa. Tudo me parecia com um ar completamente diferente, irrespirável – o trabalho, a vida, a saúde mental, nada parecia ser um refúgio depois de um dia inteiro acompanhando aquele noticiário em que pareciam inúteis todos os esforços de compreender o trauma e tentar criar uma zona de conforto – seja apontando supostas culpas, seja imaginando prevenções.


Foi como se 2011 parasse ali, e todo o mais não fosse necessário, depois daquela monstruosidade. A partir dali, todos os meses restantes de 2011 se tornaram um mero acúmulo de tentativas de minimizar aquele golpe de violência gratuita e, quem sabe, acreditar que, apesar de todo o nojo, a existência ainda pode valer mais do que essas penas e dobrar negros pessimismos, em vez de nos obrigarmos a concordar com Shakespeare, quando diz que a vida é a “história contada por um idiota, cheia de som e fúria, e nada significa”, e a viver conformados – já que estatisticamente ela é isso mesmo.


Que em 2012 você possa contrariar todas as estatísticas mais pessimistas do mundo, escapar de algumas das que ainda serão feitas e que possa provar a si mesmo que há motivos para ser feliz sem sentir vergonha disso. Que há gente sofrendo no mundo, todos sabemos. Mas há um coração que pulsa no seu peito, e você é o responsável primário pela alegria dele.

19.12.11

Adeus ao inimigo do senso comum



O fim de semana de perdas históricas - Cesária Évora, Joãosinho Trinta, Sérgio Britto, Vaclav Havel e o time do Santos - não foi suficiente para me demover de escrever sobre outra, ocorrida na quinta-feira, quando morreu o escritor e jornalista Christopher Hitchens, 62.

Autor de "Deus Não É Grande" (Ediouro, 2007), o inglês foi uma das mentes mais inquietas do nosso tempo. Contrário às religiões - por acreditar que elas são instrumentos de repressão do livre pensamento -, Hitchens foi um pensador apaixonado pela ideia da democracia e pelos valores do Ocidente, mas acima de tudo um determinado a enfrentar o senso comum. Sobre esses pilares, estruturou toda a sua defesa da incursão americana no Iraque - talvez sua segunda posição mais polêmica, depois do seu ateísmo militante.

Pessoalmente, discordo de Hitchens tanto na sua ótica sobre religião quanto ao apoio àquela guerra: nem a administração Bush merecia o suporte de tamanha inteligência numa invasão tão suja, nem a religião é só convite às trevas. Ao contrário, parte significativa do nosso conceito de civilização atual (democracia e justiça social inclusas) surge de culturas monoteístas.

O que deve ser elogiado em Hitchens é seu método. A capacidade incrível de equacionar conhecimentos históricos e emitir opiniões fundamentadas com um estilo literário assombroso fizeram-no um intelectual diverso, para consumo universal, capaz de ver mal em figuras indiscutíveis que vão desde madre Teresa de Calcutá ao ex-premiê britânico Winston Churchill, cultuado na Inglaterra e nos EUA.

Não que seja preciso aceitar seus pontos de vista (ele certamente odiaria ser visto como uma pessoa acima de qualquer suspeita ou um "mentor para a civilização"), mas a veemência do discurso hitchensiano nos fazia pensar, porque estava longe da irrelevância. Na questão religiosa, por exemplo, além de dar argumentos fulminantes aos ateus (que normalmente baseiam suas posições em experiências pessoais), ele obrigou os pensadores cristãos a virem ao debate muito mais preparados, sacudindo-lhes o mofo com sua coragem e retórica afiadíssima. Ambos os lados ganharam.

Com a partida de Hitchens, a lacuna que fica nos obriga a sermos tão inteligentes e assertivos quanto ele na defesa das liberdades que temos, das que queremos e das opiniões que, mesmo explosivas, se fazem necessárias.

15.12.11

O mais novo poeta antigo do Brasil

Um dos personagens mais interessantes criados por Woody Allen está no filme “Vicky Christina Barcelona”. Trata-se do pai do artista vivido por Javier Bardem: homem que, segundo seu filho, é capaz de “escrever os versos de amor mais belos da Terra”, mas que jamais os publicaria em vida, por acreditar que “o mundo é incapaz de compreendê-los”.


Parece que tal poeta existe, é pernambucano e padre. Chama-se Daniel Lima, tem 95 anos e foi agraciado há uma semana com o prêmio do Concurso Literário da Biblioteca Nacional.

Levou o valor de R$ 12,5 mil quase por acidente, uma vez que a obra foi inscrita no concurso por amigos – Daniel não intencionava publicações em vida e até mesmo foi contra, quando soube do que lhe foi feito à revelia. Acabou por superar mestres como Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant’Anna.

Perfis publicados nos jornais dão conta de uma timidez doentia como a principal razão para que Daniel tenha atravessado quase um século sem permitir que nós pudéssemos conhecê-lo.

Ao brilhante repórter Fabio Victor, da “Folha de S.Paulo”, Daniel resumiu sua condição atual de poeta hospitalizado, impedido de receber em mãos o prêmio que lhe deram: “Adoeci de Daniel. O mundo é muito importante, eu fico meio desorientado. Para me enquadrar nele eu tenho de sofrer e adoeço”. Missão quase tão improvável para nossos dias quanto ler poesia.

No país campeão mundial em analfabetismo funcional, poemas são ensinados como esfinges, enigmas para respostas longínquas, quando deveriam ser estopins para a detonação das verdades que guardamos em nós e de nós – e que eles sabem compreender e revelar.

Leia, por exemplo, o trecho de “Casa Revisitada”, do novo poeta antigo de Pernambuco, e veja se é possível não se identificar com ele.

“Na frente, um portão velho que rangia
como se dissesse coisas tristes a quem por ela passava.
E dentro da casa onde nasci
um corredor sem fim corria não sei para onde
E nem sei por que corria
o corredor sem fim da casa onde nasci
nem sei para onde.”

“Poemas”, de Daniel Lima, foi editado pela Cepe (R$ 45). Arrisque-se.

12.12.11

Som que marca a alma a ferro


[Destak, 12/12]
Há um novo documentário de Eduardo Coutinho nos cinemas, o que significa que temos mais uma razão para aplaudi-lo. Trata-se de um cineasta que compreende como poucos as maneiras de transformar o real em arte.

Desta vez, Coutinho mergulha fundo na relação entre memória e música. Já em "Edifício Master", ao menos três dos moradores de um prédio superpovoado em Copacabana cantavam temas inteiros. Em "As Canções", que acaba de estrear, cada entrevistado conta sua mais preciosa história, sempre citando a música brasileira que a pontuou. A maior parte dos relatos é de romances, bem ou malsucedidos, com algumas dramáticas lembranças de perda de pais aqui e ali. Quando se precisa de um fio-condutor que costure os depoimentos, é possível se convencer de que um deles é o machismo.

Na tela, um marinheiro que admite ter culpas em relação à mulher e que se compadece com o volume de trabalho dela no lar, mas que não lava um prato para ajudar. Depois temos Queimado, o homem que é visto pela namorada num baile com outra mulher. A namorada sai de lá com outro homem e, dias depois, Queimado consegue inverter a situação de forma tão magistral quanto absurda: a namorada é quem estava errada. Há ainda mais algumas mulheres que têm de lidar com a existência das amantes, de forma conformada ou até despreocupada.

A esse aparente atraso no que compete ao papel feminino, misturam-se letras de amores rasgados, homens e mulheres vítimas de feridas incuráveis, o que nos faz pensar que somos habituados ao conceito de que o mais bem-sucedido dos amores passa por uma opção de sofrimento. Escolhemos algo que nos é contrário, que até nos fere na dignidade (nas mulheres do filme, isso quase sempre se refere a submeter-se a um machismo), porque nos tira de um individualismo que protege. Dói, mas aceita-se pelo que se considera ser o "bem maior".

E vê-se que o amor inesquecível faz brotar lágrimas, como lembrança desse sofrimento autoimposto, seja porque foi árdua a luta para conquistá-lo até torná-lo bem-sucedido, seja porque dói admitir que a realidade era mais forte que o desejo. Encerra Coutinho glorificando a música, essa forma de arte maior que todas as outras, que marca memória e alma a ferro, mas também alivia quando entendemos que viver sem dores é já ter morrido.

4.12.11

Corinthians penta: um roteiro do futebol pós-socrático

Que o fim do Campeonato Brasileiro não poderia ser mais excitante do que ontem, todos já sabíamos. A ideia de programar os clássicos de arqui-rivais na última rodada foi uma das mais brilhantes saídas para prevenir a possível falta de profissionalismo ou atitudes antiéticas de clubes e jogadores. O que jamais poderíamos imaginar é que os deuses do futebol tinham se tornado tão bons cineastas.

Um hipotético filme sobre o penta do Vasco já seria de um roteiro magistral. Pense: a superação de um clube e uma torcida que encerraram uma década terrível com dois títulos nacionais no mesmo ano. A sagração de Juninho Pernambucano, a redenção de Felipe, um tributo à luta de Ricardo Gomes pela vida, o conto de um humilde auxiliar técnico, Cristóvão Borges, que virou o guia certo na hora certa.

Um belo e merecido roteiro, que não será filmado. Desta vez, a sinopse campeã é a de um time que começou o ano eliminado na Pré-Libertadores pelo folclórico Tolima. Manteve-se o técnico, contratou-se Adriano (para fazer o gol mais caro da temporada) e, como tudo deve convergir, o gol que a torcida comemorou foi marcado por Renato, do Flamengo, um jogador que foi revelado no Parque São Jorge  – e que quase foi detestado por lá. E tudo para erguer a taça do penta como tributo a um homem que foi herói e anti-herói corintiano a um só tempo. Sócrates não foi apenas um craque extraclasse. Talvez por carregar o nome de pensador, o irmão de Raí se obrigou a ser um homem de raciocínio, opinião e personalidade.

Não bastasse a criatividade de usar o toque de calcanhar para compensar sua lentidão – que se devia tanto à sua altura 1,91 m quanto a sua aversão à vida de treinos e restrições alcoólicas –, Sócrates viu no futebol uma forma de conscientizar os brasileiros sobre a necessidade de mais democracia. Além disso, viveu como quis, triunfou o quanto pôde, deixou sua marca no seio da torcida. Esporte para ele não foi saúde o tempo todo: fumava, bebia, pouco treinava. Nada muito diferente da vida de outros jogadores da história recente corintiana, mas a diferença é que com Sócrates nunca houve sonsice. Magrão nunca precisou parecer alguém que ele nunca foi. Fará falta na festa alvinegra e na Copa do Mundo de 2014: poderia lembrar aos craques que contestar também é parte do jogo.

18.11.11

Lula, o 'new look' e outros sintomas
[Destak, 18.nov]

Quando escolhemos dar na capa do Destak a foto de Lula despojado de barba e cabelo, as redes sociais já comentavam avidamente a cara nova do ex-presidente, que enfrenta um tumor na laringe. O registro mostra uma cena de família, passa otimismo e mensagens positivas - tanto para quem nutre simpatia pelo político quanto para quem tem de enfrentar um problema semelhante.

Sempre há, porém, ressalvas a respeito de como tratar a foto, que foi divulgada pelo instituto do ex-presidente. Há quem veja por trás da placidez e do bom humor familiar que a foto transpira a intenção de criar uma aura santificada em torno de Lula. Algo que viria a funcionar como bem-vinda blindagem, por assim dizer, nestes dias em que os ministros que lhe pertenciam caem, um a um, no governo Dilma.

Entre os extremos de quem vê uma perniciosa "vontade de hagiografia" de um político ávido pelo poder e de quem saúda a coragem de quem seria "o maior brasileiro de todos os tempos", ainda creio ser possível ver um homem otimista diante de mal tão traiçoeiro.

Como se sabe, muito do sucesso de Lula como político se deu em torno do culto à sua personalidade. Desde os primórdios do PT, a ideia de um líder operário que puxasse melhorias sociais e conscientizasse as massas pareceu encantadora aos seus fundadores, sejam os ideólogos ateus, sejam os padres de esquerda. Lula sempre foi um "messias" interessante, resumindo em si mesmo um conjunto bastante difuso de aliados, ideias e propósitos. Sua oratória popular, além de sua habilidade em criar acordos, tornaram-no uma figura que desperta paixões a favor e contra - talvez hoje os hemisférios mais sintomaticamente hipersensíveis da política nacional. A relevância de Lula para a história recente justifica que a surpreendente retirada de sua barba, famosa há mais de 30 anos, ganhe as capas de boa parte da imprensa.

Se Lula vai capitalizar esse momento para eleições futuras, não podemos dizer. Pessoalmente, desejo que supere tanto a doença quanto possíveis tentações futuras de usar um novo drama pessoal. Dilma deu um belo exemplo ao não fazer alarde sobre o tumor linfático que contornou antes das eleições de 2010. Que Lula possa imitá-la na saúde e na nobreza.

11.11.11

Uma oportuna reapresentação

[Destak, 11.nov]


Ocupo este espaço impresso às sextas desde setembro de 2009, como muitos dos habituais leitores do Destak em São Paulo, Rio, Brasília e, mais recentemente, Campinas já sabem. Mas ao exercê-lo hoje pela primeira vez como diretor editorial desta Redação, senti a obrigação de me reapresentar aos que nos prestigiam.


É sempre bom revalidar certos compromissos de tempos em tempos, principalmente quando algumas etapas se concluem e outros desafios se avizinham. Reapresentar-me, portanto, não será mais importante do que recordar os valores editoriais que guiam este jornal por todas as praças que ele percorre a cada dia útil, desde a sua criação. 


Em 6 de julho de 2006 - dia da primeira edição do Destak, distribuída somente na cidade de São Paulo - Fábio Santos, meu antecessor neste cargo, escreveu: "O Destak nasce com a missão de atender a um público exigente e sem tempo a perder, que busca informação concisa, mas completa. Em suas páginas, estarão as principais notícias do dia, apresentadas de modo claro e objetivo". 


A principal riqueza que se pode ter é o tempo. O seu é precioso, mesmo quando está no trânsito, no metrô ou na pausa para o café. Se nesses breves momentos nós conseguirmos cumprir nossa missão - informar com qualidade - é provável que você possa aproveitar suas horas da noite ou do dia, da folga ou do trabalho, de maneira ainda melhor. 


Por mais que os tempos mudem e ganhem maior velocidade, entendemos que nossa missão não muda, porque a informação é outra riqueza indispensável. O jornalismo se presta ao serviço de ajudar na compreensão do que se passa no tempo presente, porque todos temos futuros a construir. Bem informados, pavimentamos melhor esse caminho. 


Resta-me salientar que as posições do jornal continuam como sempre: apartidárias, independentes de quaisquer poderes políticos e econômicos, observantes dos melhores padrões éticos e técnicos do jornalismo, respeitadoras da lei em vigor e defensoras dos princípios que regem a democracia. Assim como em 6 de julho de 2006, relembramos em 11 de novembro de 2011 que esperamos contribuir para um país melhor e para o engrandecimento de nossos leitores.


E sim, contaremos sempre com vocês, leitores, para saber como oferecer este serviço da melhor forma. Obrigado.

6.10.11




MIGUEL NICOLELIS PARA A BOLA DE OURO EM 2014


A história do orgulho brasileiro é curta. Nasce por volta de 1950, com a construção do maior estádio do mundo, e tem seu auge em 1970 com o tricampeonato, mas mesmo ali a presença de uma ditadura já nos forçava a relativizar o peito inflado. Desvãos, desvios e arrepios históricos nos convidam a ter muito pouca admiração pela nação que somos. 


Somos um país triste e, sim, caro Bertolt Brecht, precisamos desesperadamente de heróis. A sorte é que, vez por outra, eles aparecem. Meu brasileiro vivo preferido é o neurocientista Miguel Nicolelis, que coordena um laboratório na Universidade Duke, na Carolina do Norte, Estados Unidos.  


Entrevistei-o por telefone uma vez, em 2006, quando fiz na Folha de S.Paulo um suplemento sobre futebol com craques de outras áreas – filósofos, literatos, artistas, acadêmicos. Miguel representava os cientistas e deu sua opinião sobre o esporte. Desse jeito, vim a saber que ele é hoje um dos pesquisadores do mundo mais próximos de fazer um tetraplégico voltar a andar – ou, no mínimo, a sentir. Na quarta passada, a revista científica Nature publicou resultados impressionantes dele. 


Sua equipe conectou computadores diretamente ao cérebro de macacos, por meio de eletrodos e cabos. Com isso, cada macaco controlou na tela a imagem de um braço virtual, que “tocava” objetos visualmente idênticos, mas com texturas diferentes. As texturas emitiam estímulos até à área do cérebro que controla o tato; ali eram captados e diferenciados – pela primeira vez, uma via de mão dupla se estabeleceu em conexões cerebrais diretas.  


A cada vez que o macaco identificasse uma textura definida, ganhava um brinde – suco de laranja. Com o tempo, os macacos conseguiram associar a textura à “recompensa”, a fim de conseguir mais suco. Como na tela do computador os objetos virtuais eram idênticos, a visão não podia ajudá-los – só o tato do braço virtual.


Traduzindo, pessoas com deficiências motoras poderão controlar – sempre através do cérebro! – próteses ou roupas robotizadas que lhes darão movimento e sensações de firmeza, temperatura e até, por que não?, carinho.  


Miguel sonha que o 1º pontapé do Mundial de 2014 seja dado por uma criança tetraplégica beneficiada por um mecanismo desenvolvido por sua pesquisa. Se der certo, pense: será que precisaremos de mais alguma vitória na Copa?

22.9.11


Rock, ou a religião que se perdeu


[No Destak]


Vai-se um R.E.M., vem um Rock in Rio, e a certeza de que envelheci se aguça. Ir a um festival parece-me hoje sacrifício enorme – que há dez anos, tirava-se de letra. E a verdade é que cada vez menos bandas novas me tocam.

Outro dia, confessei minha falta de entusiasmo com as bandas novas a amigos que celebravam o novo momento. Para eles, finalmente o rock estava livre do culto ao rockstar;  temos obras cada vez mais “abertas”e assim não somos obrigados a levar 10 canções para ouvir a única de que gostamos (é só baixá-la). E ainda se pode escolher como ouvi-las: citavam-me o último do Radiohead, que diziam ser ainda melhor na encarnação remixada. Calei-me: nunca me vi prisioneiro de rockstar, nem achava que uma obra “fechada” fosse um mal em si. Havia, sim, discos ruins e discos bons.

Sinto falta de quando o rock, em qualquer língua, tinha mais a dizer. Não exatamente uma mensagem cantada, mas uma postura contestadora de qualquer coisa. Via no rock uma estranha forma de arte, apoiada no trio gravação-show-vida. Por vida, entenda-se tudo que fosse captado pela mídia: declarações, protestos, escândalos, tudo contribuía para reforçar ou até negar a obra. Eles viviam mais intensamente que nós, e isso era também uma forma de arte poderosa – que nos alterava a alma.

Hoje, as bandas não contestam. Ao contrário, elas endossam a vida como ela já está, além de algumas marcas. Propõem quase nada além de dançar. Nada errado em si, mas é como se o rock tivesse selado um pacto de não-agressão com o mundo – e o rock sempre foi perigoso, em qualquer década. Será que o surgimento da internet decretou o fim do tédio, o inimigo comum que o rock sempre enfrentou? Se sempre temos com o que nos distrairmos assim que nos conectamos,  contestar já era. Não há mais inimigos, e lugar de sonhar é na cama. 

Ser legal  não era suficiente para uma banda quando havia gravadoras. Triste é ver que a facilidade de produzir e divulgar rock não promoveu ambições autorais, ou vontade de dar ao público em doses generosas o fascínio dos velhos concertos de rock, que injetavam endorfina. O que tenho visto, salvo raras exceções, são grupos cool , atrás de um ou outro “hit”. Os heróis e os mitos da religião que se perdeu deram lugar a pessoas a quem não precisamos gastar muito de nossas atenções. Elas fazem shows porque gostam; afinal, se fosse apenas um disco tocando, o impacto em nossas vidas seria rigorosamente o mesmo.

1.9.11

 A ARTE DE DESTRUIR CASTELOS DE AREIA

[nesta sexta, no Destak]

Era um dos desafios que me impunha quando era só um garoto de sete anos que passava férias de verão na casa de praia do meu avô, em Cabo Frio: construía um castelo de areia ali, mais ou menos perto do mar, e torcia para que, no dia seguinte, eu o encontrasse ali de pé, mais ou menos no mesmo estado.

Ficávamos nessa época muitas horas na praia – nos anos 80, a camada de ozônio não era um tema, nem o câncer de pele um pânico. Então o castelo era construído quase quando o sol se punha. Voltávamos ainda pela manhã e, para minha diária decepção, o castelo nunca ficava para o dia seguinte. Na minha cabeça de criança, era alguém que vinha entre a noite e a manhã e dilapidava meu palacete.

Acreditando que um dia eu teria sorte e essa pessoa pouparia o edifício, passei a construir castelos maiores e mais fortes, com bases realmente largas; às vezes não era nem castelo, mas apenas uma montanha teimosa e grosseira diante do oceano. Usava as pernas e os pés para mover a maior quantidade de areia possível, até que certa vez, com algumas horas de obstinação, consegui uma montanha que era do meu tamanho.

“Agora vai”, pensei. No dia seguinte, cataploft.

Irritado, desabafei com algum adulto – meu avô, meu tio, meu pai? Não me recordo – que me explicou por alto o movimento das marés. Enfim, o mar sempre levaria o castelo embora. Aquilo não era negociável. Aquela nova verdade provocou minha revolta de menos de um metro e quarenta, e eu decretei que nunca mais faria nada na areia.

Não sustentei a decisão por muito tempo. Eram tantas horas na praia que, em algum momento, a coisa mais legal que se podia fazer com primos e amigos era erguer um castelo. Sempre tentávamos algo diferente – um novo ornamento, mais ou menos torres, e até cavernas que pudessem abrigar nossos bonecos e deixar as aventuras deles mais arriscadas.

Descobri assim outra felicidade. Quando a família se retirava da praia, a última brincadeira era correr para a água e atravessar o castelo antes que o mar o levasse, demolindo-o como um gigante, numa sensação de onipotência que só décadas depois fui entender por completo. Muitos desejos são lindos de serem realizados; outros, porém, só servem para nos libertar – justamente quando desistimos deles.

25.8.11


JOBS E A 'APPLELOGIA' DA PRIMEIRA NECESSIDADE


Aposentou-se nesta semana Steve Jobs, principal executivo da Apple. Sua biografia na era dos computadores vai desde a popularização dos sistemas operacionais que usam o mouse até o iPhone e o iPad. Como empresário, reposicionou a Apple não só como gigante, mas como promotora de um estilo de vida, revolucionando comunicação, design e absorção de cultura.

A notícia girou as redes sociais, e surgiram inúmeras manifestações de gratidão e louvor a Jobs. Pedro Doria, um dos maiores especialistas brasileiros em internet, afirma que Jobs foi o “criador do nosso mundo”. Seu talento primordial, segundo Doria, era entender como as pessoas queriam ser servidas pela tecnologia. Não é pouca coisa: é a principal característica para ser inventor, publicitário, empresário, ou tudo ao mesmo tempo: sacar o mercado.

Mas o que sempre me espantou foi sua capacidade de transformar lançamentos comerciais em notícia. No mundo todo, a imprensa (e não só a especializada) dedica preciosos minutos a cada versão do iPhone – um acessório que era tratado como item de primeira necessidade. A genialidade de Jobs conseguiu fazer a imprensa cumprir o papel de anunciante mesmo quando o produto tinha apenas relativos saltos de qualidade. Pense em quantas vezes foram jornais e telejornais que o lembraram desses produtos.

A propaganda tem uma capacidade imensa de influenciar hábitos de compra, mas, quando é a imprensa que transforma um artigo comercial em notícia, a leitura é uma só: você realmente precisa ter. E talvez nós, jornalistas, nos tenhamos curvado demais a esses símbolos de status, até pela natureza de nossa profissão.

Se virmos mesmo no iPhone um artigo de primeira necessidade atual, a ponto de ser noticiado, estaremos quase perdoando os vândalos em Londres que invadiram lojas – e aí seriam dois erros de avaliação. Tais produtos são luxos. A constante “applelogia” jornalística dos lançamentos talvez tenha sido publicidade grátis em forma de notícia, reforçando esse assédio rumo ao mundo Apple.

O legado de Jobs nos trouxe conforto e praticidade preciosos, mas, como bom vendedor, criou também necessidades que não tínhamos, alimentando nossas vaidades e ansiedades. Teremos de lidar com isso.

18.8.11


A ÁRVORE DA VIDA E ALGUNS FRUTOS

Malick fala para um mundo que se acostumou a confrontar o que, de fato, é complementar

Novo filme de Terrence Malick e vencedor da Palma de Ouro em Cannes, “A Árvore da Vida” é uma obra imensa, que testa cada uma das mais fundas convicções.

Acompanha-se a formação da consciência de um menino (Hunter McCracken, prestes a fazer história) numa família dos anos 50. Ele é criado entre um pai severo (Brad Pitt), que por amor lhe impõe a lei natural do mais forte, e por uma mãe  (Jessica Chastain), que por amor lhe ensina bondades e belezas de fundo religioso. Essas duas forças – natureza e graça – são igualmente golpeadas, sem distinção, pela morte precoce de um dos seus irmãos. 

Enquanto uma personalidade se cria, Malick recorda outras questões, a consciência humana sobre o universo e seu papel nele, até o momento em que ambas as evoluções – a do menino e a do planeta – se confundem numa só. O menino se tornará Sean Penn, num mundo corporativo, instalado em arquiteturas arrojadas, e a sensação que se tem é que a evolução não nos tirou do caos. Sai-se do Big Bang para chegar à depressão – e ainda vive-se o peso de ser a espécie condenada a indagar se Deus é o criador ou se é só uma alegoria gasta, que a ciência ainda há de negar por completo.

Ao justapor o criacionismo do Livro de Jó (38:4,7) a imagens darwinistas, Malick vê o curso da evolução do Universo prosseguir no interior do homem. O menino é a evolução de sua família; é quem deve equacionar as lições impostas e pavimentar seu futuro. A evolução da humanidade depende dessas decisões pessoais, surgidas do confronto entre a natureza, que nos quer animais, e a graça, que nos inspira a ser bons. Um combate desigual, mas inesgotável, cheio de belas perguntas.

Como é artista, Malick não oferece uma resposta categórica; sua visão ambiciosa é um sumário das belezas sacras (na música que seleciona e nas imagens de epifanias e redenções) e das científicas (exatas, biológicas e até humanas) e fala para um mundo que se acostumou a confrontar o que, de fato, é complementar. 

Sob o denominador comum de Malick, a ciência objetiva explicar os “métodos de Deus”, enquanto a espiritualidade oferece paz e paciência diante do ainda não esclarecido e incentiva a minimizar as injustiças naturais. Juntas, contribuem para o mesmo fim utópico: decifrar a nós mesmos, o como e os porquês.

11.8.11


TIVEMOS OU NÃO UM NOVO 174?

O tiro que acertou o tórax da passageira Lisa Mônica Pereira, de 46 anos, durante sequestro de ônibus no Centro do Rio – bem como todos os outros 15 disparos contados na carcaça do coletivo – foi admitido como erro pelo secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, e pelo comandante geral da PM, Mário Sérgio Duarte. Lisa permanece em estado grave na UTI de um hospital público.

A pergunta agora é: houve um novo 174? A essa questão, o governador Sérgio Cabral responde: há enormes diferenças. Vejamos.

Em 2000, o ônibus 174 foi uma das mais marcantes tragédias do Rio de Janeiro. O ótimo documentário de José Padilha eternizou o horror perpetrado primeiro por Sandro do Nascimento, um ladrão entupido de drogas que já havia sido um sobrevivente da chacina da Candelária; depois pela imperícia de um soldado do Bope, que usou uma arma de baixa precisão para uma ação em que precisão era tudo; e finalmente, pelos PMs, que num ato justiceiro e, sobretudo, corporativo, deram fim a um Sandro dominado, já dentro de um camburão. Em 2000, a jovem Geisa foi a trágica vítima dessa sequência de erros. Hoje, Lisa é quem sofre com um tiro que parece originado dessa série de equívocos assumida pelo Estado.

Situações que envolvem reféns são dos maiores dramas que policiais podem viver. Lidam com a imprevisibilidade do criminoso que enfrentam, e põem à prova toda a qualidade do treinamento que receberam. Com a transmissão ao vivo pela TV, como aconteceu em ambos os casos, é inevitável que a repercussão de erro se multiplique: há a empatia imediata entre a opinião pública e os reféns. Vê-los indefesos sob a mira de várias armas numa situação corriqueira, como voltar para casa de ônibus, faz com que nós exijamos que tudo dê certo.

Respeito Cabral quando diz que a operação difere demais da de 2000 – a começar pelo governador, que não assumiu o comando da ação, conforme fez Garotinho em 2000. Poderes devem ser delegados a especialistas. Onze foram salvos, e nenhum preso foi justiçado.

Infelizmente, ainda temos uma mulher em estado grave num hospital, devido a um equívoco policial. E há uma decisão de não recolher todas as armas empregadas, o que soa ao pior do corporativismo. Portanto, seria de bom tom admitir que o que ocorreu no ônibus da Viação Jurema ainda guarda, no cerne dos fatos, semelhanças demais com o fatídico 174.

4.8.11

O DIA DO ORGULHO DE LAVAR UMA ROUPA


Agora vai. São Paulo, motor e radar desta Nação, locomotiva do progresso e dotada de uma Câmara de Vereadores antenada, São Paulo aprovou a criação do fabuloso Dia Paulistano do Orgulho Heterossexual.

Acredito que cada paulistano, vivo ou morto, deve agradecer à sua divindade preferida por este momento. Tem-se ali, naquela metrópole, vereadores que lutam com afinco por uma sociedade mais justa, humana e igualitária.

Orgulha-me cada vez mais que este país hiperdesenvolvido, este mastodonte tropical, esta verdadeira Suécia em português, tenha resolvido seus principais problemas estruturais, sua desigualdade social e o analfabetismo regado a água e farinha. Finalmente podemos dedicar nossas preciosas legislaturas a estes debates inteligentes, gerados por figuras de proa, como o vereador Carlos Apolinário, luz e glória da andante cavalaria do DEM. Seus eleitores regozijam-se totalmente representados, imagino, esperando só que o prefeito Kassab sancione.

O coração paulistano já pode se ufanar de contar com os melhores restaurantes, os engarrafamentos mais duradouros, o ar mais poluído e o terceiro domingo de dezembro, que será reservado ao orgulho de ser um homem que gosta de mulher e vice-versa. Nada mais falta.

O emocionante é que São Paulo fica apta para outros debates igualmente importantes e onipresentes, como o beijo gay em novela das oito – essa conquista sociocultural que ainda nos falta, maior que o Oscar, maior que o Nobel.

Sobretudo, São Paulo poderá tratar da questão que realmente me comove no Brasil: a gritante falta de roupa para lavar nos Legislativos.

No país com que sonho, todo parlamentar teria uma trouxa de roupa para lavar, enviada por  eleitores. Gosto da ideia de que seja semanal. Ao receber a roupa suja, o político conversaria com sua base eleitoral sobre os projetos que encaminhou ou pretende encaminhar ao plenário. Semana após semana, com as roupas de molho no tanque, o eleitor acompanharia o mandato do homem que elegeu como representante e poderia lhe dizer como sua vida melhorou com a ação do legislador.

Em tempo: não conheço um único hétero paulistano orgulhoso do dia criado por Dom Apolinário. Mas aguardo ansioso as fotos da passeata do terceiro domingo de dezembro.

28.7.11

Santos 4x5 Fla - Para lembrar que bola é coisa séria 

Há tempos que eu não escrevo sobre futebol aqui – o artigo em que comparei a Copa de 2014 ao cavalo de Troia, convenhamos, não vale. A suspeita de que o Santos 4x5 Flamengo da última quarta pode ter sido o jogo mais emocionante que já vi me fez abandonar Amy Winehouse, a Noruega e o casamento gay. Futebol, como se sabe, é assunto extremamente sério. Sou da opinião de que o futebol concedeu ao brasileiro a permissão de sonhar que o país tinha jeito.

O Santos 4x5 Flamengo da última quarta é parente de um futebol que, por ter 32 anos, não vi: aquele dos ataques generosos e das defesas quixotescas dos anos 50 e 60, de Pelé, Garrincha, Telê. Tem um pé na pelada e outro na epopeia. Exultante, meu pai me ligou dizendo que o Flamengo “tinha atravessado o mar Vermelho!”. Não sei dizer exatamente quem seria Moisés e os israelitas nem quem seriam os egípcios e o mar Vermelho, mas entendo perfeitamente o que ele quis dizer.

Raramente se vê um time reverter uma desvantagem de 3 a 0. Em 2000, o Vasco conseguiu isso numa final de Mercosul sobre o Palmeiras, na noite em que, com três gols, um Romário possuído suplantou até mesmo a expulsão de seu colega Júnior Baiano e levou a taça a São Januário. Não tenho muitos outros exemplos na ponta da língua.

A partida foi tão generosa em dramaticidade que, além da profusão de gols, teve pênalti perdido (Elano) e gol inacreditavelmente desperdiçado (Deivid, trocando passes consigo mesmo). Aliás, teve até sequestro de pai.

E um conflito de gerações. De um lado, Neymar, que decreta a volta da escravidão aos zagueiros, submetendo-os às suas vontades improvisadas ao cúmulo de humilhar um beque tão cavalheiro quanto Ronaldo Angelim – que merece, mais do que o prêmio Fair Play da Fifa, uma indicação ao Nobel da Paz.

Do outro, Ronaldinho. Se não é mais o tirano dos campos que um dia foi (como Neymar hoje é), ainda sabe fazer uma barreira levitar, a fim de dar à bola o mais curto atalho para o gol. Aos 31 anos, o gaúcho ainda reserva algumas façanhas por realizar. Desde ontem, ele também é o cara que ensinou à nova geração de craques e torcedores a reação impossível, com arte nos pés e raça nas vontades.

Não é sempre que se pode aprender uma lição dessas. Que Ganso e Neymar guardem isso para 2014.

22.7.11

 A BELEZA QUE SÓ SE ENTENDE NA VOZ
 [Destak, 22 de julho]

A verdade é que a parte mais bonita do corpo da mulher é a voz. Não sei se dou atenção demasiada às circunstâncias musicais da vida, mas me parece extremamente difícil amar alguém cuja voz parece fora do tom em que se afina o coração. 

Não é questão de ser mais ou menos aguda, ou mais ou menos grave. Tanto o mais estridente flautim quanto o mais solene violoncelo têm sua música particular e podem ser extremamente agradáveis ou provocantes; depende de como se maneja, e a voz funciona igualmente. 

E não estou falando de cantoras. Falo daquela voz que ao telefone hipnotiza, que sabe nos acordar quando os olhos ainda estão fechados e que consegue derreter as geleiras da alma mesmo quando discorda de nós ou aponta nossos equívocos com severidade. 

Há uma extensão clara disso no nosso mundo cada vez mais verbal, que às vezes não é percebida: mesmo numa mensagem de texto por celular, ou numa conversa em chat, há uma voz que se ouve nos olhos de quem lê. 

Há quem diga que escrever bem é sexy, e nesse caso os critérios variam. Não vou dizer quais são os meus, mas tenho certeza de que isso tem a ver com a possibilidade de imaginar a pessoa dizendo isso, a expressão alheia que nos vem à mente quando a lemos. 

Ainda assim, escrever é um ato pensado. Há sempre um tempo que permite hesitar, reconsiderar ou mesmo elaborar a melhor resposta. A voz padece por ser um veículo da espontaneidade. É possível perguntar ao celular se "está tudo bem" apenas por sentir que a voz do outro lado está estranha e nos preocupa. A quilômetros de distância, ela ainda é capaz de denunciar o mais triste dos semblantes. 

E sempre há o tempero dos sotaques, que nada mais são do que essa melodia da fala que aprendemos quando queremos fazer parte de algum grupo de falantes. No Rio, ela se assemelha a uma ladeira que termina numa freada harmoniosa; em São Paulo, vem embalada em consoantes secas e uma nasalidade que cai de paraquedas; no Sul, ela repete uma frequência que aponta várias vezes para cima; e, no Nordeste, quem fala não tem nada a esconder.

19.7.11

Cold, poema da escocesa Carol-Ann Duffy, foi publicado sem tradução na capa da última edição do Prosa & Verso de O Globo, e acabou me provocando. O resultado é este, e o original em inglês vai mais abaixo.

Frio

Era tão fria a bola que nas mãos chorava
neve, e que ao rolar crescia pela neve até
que nela eu me sentasse, olhando para casa,
onde, num quarto frio de janelas cegas
de gelo, meus suspiros no ar se desnudavam.
Frio também no abraço que deu forma ao Homem
de Neve, e em meus dedões que ardiam frios dentro
das botas invernais; mamãe que me gritava
"Sai do frio!", com frias mãos de descascar
batatas que esperaram enquanto me beijava
cada bochecha fria e o meu frio nariz.
Mas nada frio como a noite fevereira
em que, nem jovem nem idosa, ela jazia,
e a testa aos lábios deu-me a tradução de "fria" .

OBS: O poema obrigou-me a empregar doze sílabas em cada verso (medida igualmente usada pela poeta escocesa), e rima no par final de versos. A gente abre mão de muita coisa quando traduz sem "liberdade". É mais uma revelação incompleta de intenções originais, além das escolhas que nos são mais caras. Espero que gostem.

Aqui, o original, com os direitos reservados.


Cold
It felt so cold, the snowball which wept in my hands,
and when I rolled it along in the snow, it grew
till I could sit on it, looking back at the house,
where it was cold when I woke in my room, the windows
blind with ice, my breath undressed itself on the air.
Cold, too, embracing the torso of snow which I lifted up
in my arms to build a snowman, my toes, burning, cold
in my winter boots; my mother’s voice calling me in
from the cold. And her hands were cold from peeling
then dipping potatoes into a bowl, stopping to cup
her daughter’s face, a kiss for both cold cheeks, my cold nose.
But nothing so cold as the February night I opened the door
in the Chapel of Rest where my mother lay, neither young, nor old,
where my lips, returning her kiss to her brow, knew the meaning of cold.


14.7.11

A lenda do cavalo da Troia tropical


Houve certa vez uma Troia tropical. Um país em desenvolvimento, historicamente marginal, vitimado por uma baixa estima incongruente com sua grandeza territorial e que tinha por principal orgulho... a sua cavalaria. Um dia, em seu litoral, foi deixado um gigantesco cavalo de madeira, que maravilhou a população. 


No casco da estátua, lia-se: “Garantia até julho de 2014, sob condições específicas”.

Ciente da clamorosa aprovação do povo, o rei bancou o presente, argumentando que “o cavalo é a paixão nacional”, que Troia merecia ter aquele orgulho e que o monumento geraria empregos e melhoraria muito o país em termos de estrutura. Até os aeroportos seriam ampliados para suportar o transporte do enorme animal. Estábulos em todo o país seriam reformados e novas estrebarias erguidas, e haveria investimento estrangeiro em inúmeras áreas. Troia estaria no centro das atenções do mundo.

Algumas sacerdotisas profetizaram, porém, que o cavalo talvez fosse um “presente de grego”. Já havia acontecido na África, onde a passagem de um equino semelhante em 2010 deixou vários elefantes brancos de vergonha, num rastro de gastos excessivos.

Em Troia, a obra de um estábulo histórico perto de um rio foi orçada em R$ 1 bilhão. Já na primeira cidade que receberia o cavalo, erguer-se-ia às pressas uma estrebaria privada que era sonho do rei. Foi presenteada com isenção de impostos, o que gerou chiadeira da oposição.

O rei não deu bola. “Deixa essas Cassandras, elas sempre falam”. Aceitou as condições dos exigentes tratadores do bicho e, anos depois, deixou a rainha para tocar as obras, que já andavam atrasadas como nunca antes. Fora outros problemas: cortes no Orçamento, concessões de ministérios aqui e ali para partidos que garantiam a governabilidade no Parlamento. Também a inflação batia as portas e o custo de vida aumentava. Morar em Troia tinha ficado bem mais caro, em parte devido ao que alguns analistas batizaram de “custo hípico”.

E nos campos de Troia, conviviam tanto a esperança de que a Cavalaria fizesse bom papel na festa quanto o temor de que, de dentro do cavalo, saísse um furioso Exército de contas. Que jamais se pagariam sem sangria pública.

1.7.11

Você sabe quanto custa R$ 1 bilhão?
[publicada no Destak de 30.jun]


O brasileiro médio dificilmente vai ter contato com R$ 1 bilhão. Nem mesmo os mais afortunados acertadores de loterias sabem dimensionar. Bilhões são para bancos, empreiteiras e valores relacionados a balanços e orçamentos dos governos. Dá para dizer que é raro haver R$ 1 bilhão sem governo no meio. Vou além: o bilhão de reais é quase uma unidade de grandeza exclusiva para dinheiro de gente que se relaciona com governos.

Um Maracanã reformado custa R$ 1 bilhão. Pronto, já temos um sinônimo para a grandeza.

Lembram-se de quando uma grande passeata no Centro do Rio gritou pelos royalties do petróleo? A conta que se trombeteava em 2010 era a de que, sem os dividendos do ouro negro, o Estado perderia R$ 7,2 bilhões anualmente. Segundo o governador Sérgio Cabral, essa seca faria o Rio literalmente "quebrar".

Sem os royalties, em quatro anos - tempo que dura um mandato estadual - o Rio teria perdido R$ 28,8 bilhões. E assim "quebraria".

Pois bem. Recentemente, outra conta que "quebraria o Estado" foi feita, a respeito do aumento dos bombeiros. Caso fosse concedido o piso de R$ 2 mil que a categoria inicialmente pleiteava - e que seria obrigatoriamente estendido aos policiais -, o impacto nas contas do Estado seria de R$ 4,7 bilhões por ano.

Em quatro anos - sempre pensando em um mandato - R$ 18,8 bilhões seriam gastos com as forças. Somados aos R$ 28,8 bilhões dos royalties "perdidos", uma gestão que "quebraria o Estado" teria perdido R$ 47,6 bilhões.

Por que uso quatro anos? Porque foi de 2007 a 2010 - primeira gestão de Cabral - que o Rio abriu mão de R$ 50 bilhões em impostos para beneficiar empresas: desde setores estratégicos, como a fábrica da Michelin, até uma famosa rede de cabeleireiros e duas termas. Esses R$ 50 bilhões são mais da metade do que Cabral arrecadou em impostos no período: R$ 97 bilhões, segundo a Folha de S.Paulo.

Renúncia fiscal é ferramenta para o progresso, quando bem-usada. Mas, se não for aplicada com rigor e sentido estratégico, pode quebrar um Estado. E aí surgem 1 bilhão de desculpas.

6.6.11

SUÍTE PARA BAILARINA SOLO


1. Prelúdio

Te ver dançar
é como explicar a Deus
o conceito por trás das divindades
que criamos
para nos afastarmos
d'Ele.

2.6.11

A matemática da vida em Fukushima

Há no Japão um grupo de 200 aposentados, em sua maioria engenheiros, que se oferece para substituir trabalhadores mais jovens num perigoso trabalho: a manutenção da usina nuclear de Fukushima, que foi seriamente afetada pelo grande terremoto de três meses atrás. Os reparos envolvem altos níveis de radioatividade cancerígena.

Em entrevista à BBC, o voluntário Yasuteru Yamada, que tem 72 anos e negocia com o reticente governo japonês e a companhia, usa uma lógica tão simples quanto assombrosa.

“Em média, devo viver mais uns 15 anos. Já um câncer vindo da radiação levaria de 20 a 30 anos para surgir. Logo, nós que somos mais velhos temos menos risco de desenvolver câncer”, afirma Yamada.

É arrepiante. Na contramão do individualismo atual – e lidando de uma maneira absolutamente realista em relação à vida e à morte –, sexagenários e septuagenários querem dar uma última contribuição: ser úteis em seus últimos anos e permitir que alguns jovens possam chegar às idades deles com saúde e disposição semelhantes.  

O que mais impressiona em toda a história é a matemática da vida. A morte não é para eles um problema a ser solucionado – ou talvez corrigido, pela hipótese mística da vida eterna que medicina e biologia tentam encampar e da qual as revistas de boa saúde tentam nos convencer; a morte é, de fato, a constante da equação.

Nada que o mundo ocidental não conheça. O filósofo alemão Georg Friedrich Hegel (1770-1831) certa vez definiu “mestre” como alguém desapegado da vida a ponto de enfrentar a morte, enquanto “servo” seria um escravo do desejo de continuar vivo – e que obedeceria mais às regras que lhe garantissem a sobrevida. Em consequência, o servo anula sua vontade de transformar o mundo e a si mesmo.

Criados numa sociedade de consumo, corremos o risco de levar essa escravidão às últimas, defendendo a boa saúde e os confortos com muito mais afinco do que aquilo que podemos fazer por nós e pelos outros enquanto ainda gozamos dela.

Os senhores do Japão ensinam que a morte é a hora em que podemos continuar a existir na memória das pessoas – uma oportunidade que, para mim, eles não perdem mais.

27.5.11

E agora a solidão tornou-se doença

A chamada na capa da Folha de S.Paulo me causou calafrios: "Solidão é doença e vivemos uma epidemia, diz estudo". Sempre entendi que a solidão era uma circunstância, uma consequência ou uma opção. Nunca me passou pela cabeça que fosse um estado patologicamente anormal e demandasse uma "cura".

Pensei nos vários solitários por opção que a partir de agora necessitavam de ajuda médica - haviam feito uma opção tão "suicida" quanto a de quem... fuma, para algumas cabeças mais radicais. Pensei nos inúmeros hipocondríacos que poderiam se juntar a qualquer pessoa para se prevenir. E pensei em como o século 21 anda babaca. Felizmente, quando lida, a matéria negava parcialmente sua chamada.

A causa da matéria é o livro Solidão - a Natureza Humana e a Necessidade de Vínculo Social (no Brasil, ed. Record), que destrincha os estudos sobre o tema feitos ao logo de 20 anos pelo psicólogo americano John Cacioppo, da Universidade de Chicago.

Tenho altas preocupações com esses estudos. Não que não sejam sérios - e este parece sê-lo - ou que as revelações não sejam aproveitáveis.

Mas concluir que a solidão "é um sinal de que algo não vai bem e que precisamos reforçar os vínculos sociais", como disse Colacioppo ao repórter da Folha, é sustentar que o aspecto do bem-estar biológico deve comandar toda e qualquer decisão da sua vida. Se a solidão é um estado que, como mostram os dados, pode levar ao aumento de doenças cardiovasculares, estresse e distúrbios de sono, é melhor então estar mal acompanhado?

A encruzilhada da ciência entre o biológico e o comportamental é um radar extremamente necessário, que desenvolveu alívios químicos a pessoas com depressão, ansiedade, insônia e outros transtornos que antigamente podiam passar despercebidos ou ser encarados como traços imutáveis da personalidade.

No entanto, há de se ter cuidado com esforços de normatizar a existência humana e seu vasto leque de sensações, em busca de um ideal de bem-estar. A solidão, como a tristeza, é das situações a que estamos sujeitos - primeiro, por estarmos vivos; segundo, por nossa cultura individualizante. Mas pode ser uma experiência absurdamente enriquecedora, ou uma opção de vida. Se sempre padeceremos, que ao menos evitem-se as precauções tolas.

20.5.11

EFEITOS DE UMA CANÇÃO DO EXÍLIO

O carioca vai caindo aos poucos na real a respeito de ter virado a capital do mundo na década atual. Antes a preocupação, porém, era macro: o custo bilionário das obras, o superfaturamento, os elefantes brancos. Tudo alarmante, mas ainda distante do cidadão comum, que dormia tranquilo.

A conta, no entanto, começa a chegar em sinais mais perceptíveis. A alta dos imóveis é assombrosa em várias regiões da cidade, e é cada vez mais comum ver gente que morava de aluguel na zona sul se mudando para bairros mais afastados porque os donos dos imóveis pedem o dobro nas renegociações.

Para muitos, uma canção do exílio, uma vez que essa alta dos aluguéis visa principalmente ao maior fluxo de turistas. O proprietário prefere alugar por temporada, modalidade em que ganha mais dinheiro, e há demanda para jogar os preços nas alturas, como pedir R$ 2,7 mil por um quarto e sala de 50 metros quadrados no primeiro andar no Leblon.

Essa mudança na demografia da cidade pode ser bastante interessante nos próximos anos: com uma zona sul ainda mais turística e cara, pode-se ter uma alteração no comportamento de um tipo de habitante que costumava se entricheirar na zona sul e dali não saía, a não ser sob protesto. Ir até a Barra? Um horror. Zona oeste? Terra de Marlboro. Zona norte? Perigoso.

Muitos desses preconceitos podem estar diante de uma diminuição a fórceps, uma vez que o principado do sul será cada vez menos da classe média nativa. Os especialistas não veem nessas altas uma bolha - ao contrário, encara-se a escalada dos preços dos imóveis como uma constante de década, que poucos ganhos conseguirão acompanhar.

Pode ser uma grande chance de ver um Rio mais preocupado com os Rios que não aparecem em cartões-postais. Que vai se ver obrigado a exigir do poder público a mesma quantidade de privilégios a que estava acostumado nos bairros onde se habituou a morar.

Por isso, é necessário um olhar muito interessado da população às metas de transportes, sejam elas vias expressas, sejam reordenamentos de ônibus, sejam extensões do metrô e, sobretudo, uma atenção rigorosa com o desenvolvimento das ações nas UPPs. Todo carioca deve manter esses movimentos no radar, porque a cidade que lhe pertence hoje poderá ser outra.

7.4.11

WELLINGTON, OU A ÂNSIA DE EXPLICÁ-LO

Coluna do Destak para sexta, 8 de abril

Filho adotivo de dita esquizofrênica. Fanático religioso, berram alguns, com certo prazer. Suposta vítima de bullying, chutam. Barbudo, terrorista simpático ao islamismo, classificam. “Animal” é a posição oficial. Assassino premeditado é o óbvio. “Ele é portador do vírus HIV, está na carta!” Ninguém lê isso na tal carta, mas repete. Vai que uma dessas explica.

Nos próximos dias, o cadáver de Wellington Menezes de Oliveira será esquadrinhado, dissecado, exumado e examinado pelo nosso desespero na busca da compreensão do mal. Queremos saber o que ele apresentaria como razões – como se houvesse alguma que pudéssemos aceitar – para efetuar de 30 a cem disparos contra crianças na escola onde um dia estudou.

A minha impressão é de que sempre perderemos o foco em chutes e análises apressadas. Assim como não se cria um Wellington da noite para o dia, não se explica um Wellington menos de 24 horas depois de sermos apresentados a um. Fora que boa parte das “explicações” revela menos dele e mais dos nossos preconceitos – cultura pop com ares de psicologia forense também cola, a gente gosta de séries policiais.

Já perdêramos esse foco antes, quando o nosso olhar oprimido-rancoroso notava tragédias em escolas americanas com certo desdém – tudo era fruto da paranoia da América. “A descontração nos salva, a cultura armamentista deles se volta contra eles mesmos.” Tudo problema deles. Ver a chacina escolar ocorrer – não numa high school  do Meio-Oeste americano, mas na zona oeste carioca – é mais complicado. Essa paranoia não era nossa. E agora, como fica?

É mais fácil aceitarmos, primeiramente, que Wellington jamais fará sentido. Assim começaremos a compreendê-lo.

Seja lá quais forem, os gatilhos que o transformaram no mais novo monstro nacional normalmente não têm efeito igual na esmagadora maioria das vítimas de traumas, mágoas, rancores e transtornos mentais.

O certo é que uma escola pública não pode permitir que qualquer ex-aluno entre em suas dependências a fim de dar “palestras”, sem referências de quem ele é hoje ou o que faz. Todos os criminosos, um dia, foram crianças; sorriam, brincavam e pareciam encarnar o bem.

22.3.11

POR QUE ALL AND EVERYONE, DE PJ HARVEY, É UM MUSICAÇO


Há certos momentos em que o poeta (ou, para usar uma palavra menos hã, "cafona", um letrista), parece simplesmente tomado de algum espírito. Poetas e profetas já foram vistos com um certo parentesco. "Vate" é uma palavra que pode ser sinônimo das duas ocupações.

"All and Everyone", faixa 5 do disco "Let England Shake", de PJ Harvey, cantora de cuja obra nunca me aproximei, é desses lampejos. O tema que ela aborda é a batalha de Gallipoli (ou Dardanelles), em 1915, Primeira Guerra Mundial, em que os turcos resistiram a um cerco de aliados ingleses e franceses, que tentavam tomar Constantinopla sob um sol inclemente de verão do Norte. Na soma de mortos dos dois lados, a história conta algo em torno de 392 mil. Mas, fora alguns topônimos citados na canção, como Bolton's Ridge, você não precisa se preocupar com isso.



É uma canção apocalíptica. PJ Harvey anuncia, como num despertar, que "a Morte estava estava em todos os lugares", sustentada por uma harmonia tocada em ritmo quase marcial. É um terror praticamente visual, dada a tensão nos acordes e o tom hipnótico com que PJ canta. Soa como um Cassandra, anunciando a queda iminente de Troia nas visões que teve durante o sono.

São imagens raras, inacreditáveis para a música pop, e assombrosas mesmo quando avaliadas sem a melodia, e ainda quando traduzidas.

"Quando você enrolava um fumo,
Ou contava uma piada,
Ela (A Morte) estava na gargalhada
E na água potável".

"A Morte se pendurava na fumaça e se agarrava
Aos 400 acres de uma inútil orla.
Um banco de terra pingava morte
agora, e agora e agora."

E, por fim, meu dístico preferido:

"A Morte estava no Sol que nos mirava,
fixando seus olhos em todos."

Não é coisa fácil, e sustenta-se por si. Com o arranjo econômico, essa letra nos põe diante do abismo, num crescendo de medo. É uma canção dramática, cinematográfica, extraordinária, com uma incrível divisão de sílabas. Reparem no impacto da antecipação da palavra negritada.

"Death was in the ancient fortress,
shelled by a million bullets
from gunners, waiting in the copses"

E ainda usa um surpreendente recurso de quebra de ritmo, que parece abrir fogo contra nossos ouvidos neste momento; "bank" quase vira "bang".

"Death hung in the smoke and clung
to 400 acres of useless beachfront.
bank of red earth, dripping down death
now, and now, and now"

(Para nós que falamos português e entendemos o inglês como uma língua universal, não deixo de pensar que certas frases só poderão ser aceitas em inglês. Em português, estaríamos diante da grosseira visão que PJ nos proporciona e não poderíamos encará-la. Pense num artista nacional que pudesse cantar esses versos sem soar caricato ou impostor. Às vezes, a minha sensação é que a canção em português do Brasil não tem salvo-conduto para adentrar certos terrenos, ou ainda não chegou alguém com credibilidade suficiente para alcançá-los.)

Mas vai além. Leio esses versos de PJ Harvey e não consigo deixar de relacioná-los com a Líbia e no tsunami japonês, para citar duas orlas que vieram a sangrar recentemente. É nesses lances do Acaso que a poesia fica ainda mais impressionante: quando profetiza. Elimine-se o cunho histórico inglês que Polly Jean quis dar ao seu disco e mergulhe-se nessa marcha, em que o sol impossível é simbolizado no momento de relativa tranquilidade, como se a música exibisse um cansaço em seu caminhar corajoso ao dizer:

"As we, advancing in the sun".