29.4.13

Não é a maioridade, é cassar a licença















A maioridade penal não é o nosso problema. A questão é que há um significativo número de adolescentes que se consideram com licença para matar porque não completaram 18 anos.

O que aconteceu na semana passada com a dentista Cynthia Moutinho, 47, queimada viva no consultório dela em São Bernardo (foto), e com o estudante Victor Hugo Deppman, 19, na zona leste de São Paulo, são crimes hediondos, cometidos por jovens que sabiam o que estavam fazendo, mas que não se sentiram suficientemente intimidados para evitar.

É muito difícil que um jovem chegue aos 15 anos sem saber que pesos e consequências existem quando se mata alguém. E o que estamos percebendo é o contrário: jovens que sabem exatamente o que podem perder topam passar algo em torno de 3 anos numa instituição de custódia, caso sejam pegos e estrategicamente incriminados. Não é por outro motivo que havia menores até no assassinato de Eliza Samúdio.

As estatísticas estão a favor deles. O Brasil elucida menos de 6% dos seus cerca de 50 mil casos de homicídio por ano. Matar alguém e escapar em mais de 90% das vezes é absolutamente possível; sendo menor, a pena é irrisória. Dentro das circunstâncias sociais que fazem o crime germinar, o menor virou o álibi mais fácil diante do Código Penal - e sim, os criminosos consultam seus advogados.

Iniciar esse debate não deveria ser visto como um sinal de princípios reacionários, nem respondido com as habituais rotulações de uma parte da esquerda sem contato com a realidade, mas uma real preocupação de que o crime hediondo seja tratado como hediondo no papel compensatório que também cabe à Justiça.

Assim, é uma jogada inteligente a proposta encaminhada ao Congresso pelo governador de São Paulo, Geraldo Alckmin - que amplia as internações de menores de 3 anos para 8 anos e aumenta penas do Código Penal para quem usa menores em bandos criminosos, também de três para 8 anos.

Em suma, usar um adolescente passaria de vantagem a péssimo negócio.

A mudança já desestimularia o engajamento de menores e não se tocaria na maioridade penal. Ainda entenderíamos roubos e furtos de menores como devem ser entendidos: fraquezas recuperáveis de caráter. Obviamente, é importante trabalhar em todas as pontas: dar educação de base e escolas profissionalizantes, criar empregos e reciclar nossas instituições de internação e presídios.

Mas a cassação dessa licença para matar na juventude tem todos os motivos para ser vista como prioritária.


25.4.13

Vida, mortos e jornalismo






Você sabia que cerca de 150 mil pessoas morrem diariamente em todo planeta?

O dado me era desconhecido até lê-lo no brilhante “Uma Breve História da Eternidade” (ed. Três Estrelas), do historiador cubano-americano Carlos Eire. O livro conta como esse conceito, explorado por religiões e filósofos, influenciou costumes e políticas ao longo da humanidade, moldando e sendo moldado por ela.

Ainda assim, fixo-me nessas 150 mil vítimas de doenças, ou de fatos que eventualmente se transformam ou não em notícia, ou simplesmente da condição de um dia ter nascido. No universo dos 7 bilhões de humanos, essa fração é irrisória: é pouco mais de 0,002% dos que estão vivos a cada dia.

Algo em torno de dois Maracanãs do tamanho do que será reinaugurado amanhã, mas ainda pequeno se você pensar no Galo da Madrugada, no Cordão do Bola Preta ou na Parada do Orgulho Gay de São Paulo, cada uma dessas multidões clamando para si números que variam na casa do milhão.

As circunstâncias que acarretam as mortes se distribuem de forma desigual de país para país: guerras, trânsito irracional, crimes, doenças, desastres, má higiene, mau saneamento ou má alimentação, acidentes estruturais. Porém, se o Anjo da Morte fosse um democrata e aplicasse sua proporção de 0,002% óbitos de forma igualitária em cada nação, teríamos 3.500 últimos suspiros de brasileiros por dia. Pelos mais diversos motivos, doenças e crimes.

No Estado de São Paulo, seriam em média 838 mortos – assim como na Argentina, que tem população semelhante em números. No Rio, 324 falecimentos, bem como no Chile. Em Pernambuco,  178 enterros, nove a mais que na Áustria. No Distrito Federal, assim como na Jamaica, seriam conduzidos 53 funerais.

“De morte natural nunca ninguém morreu”, escreveu o português Jorge de Sena (1919-1978), resumindo nosso eterno inconformismo ante o desfecho irrevogável da vida – algo que as estatísticas leem com frieza atroz. Outro poeta, o inglês John Donne (1572-1631), foi mais além na solidariedade: “A morte de cada homem diminui-me, porque sou parte da humanidade”, e a cada vez que os sinos dobravam em luto, via seu próprio fim iminente lamentado.

Para um jornal, cabe a dura tarefa de escolher quais mortes terão mais atenção, por suas circunstâncias, consequências, proximidade ou pela fama da vida que se encerra. Fomos e seremos sempre coveiros de um cemitério que não tem sepulturas suficientes para todos os que a ele chegam.







*A Morte, O Espaço, A Eternidade
de Jorge de Sena
De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos,
não foi só para a morte que dos tempos
chega até nós esse murmúrio cavo,
inconsolado, uivante, estertorado,
desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrumanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inominável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fora
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo esta ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais.
A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza. Somos
esse negar da espécie, esse negar do que
nos liga ainda ao Sol, à terra, às águas.
Para emergir nascemos. Contra tudo e além
de quanto seja o ser-se sempre o mesmo
que nasce e morre, nasce e morre, acaba
como uma espécie extinta de outras eras.
Para emergirmos livres foi que a morte
nos deu um medo que é nosso destino.
Tudo se fez para escapar-lhe, tudo
se imaginou para iludi-la, tudo
até coragem, desapego, amor,
tudo para que a morte fosse natural.
Não é. Como, se o fôra, há tantos milhões de anos
a conhecemos, a sofremos, a vivemos,
e mesmo assassinando a não queremos?
Como nunca ninguém a recebeu
senão cansado de viver? Como a ninguém
sequer é concebível para quem lhe seja
um ente amado, um ser diverso, um corpo
que mais amamos que a nós próprios? Como
será que os animais, junto de nós,
a mostram na amargura de um olhar
que lânguido esmorece rebelado?
E desde sempre se morreu. Que prova?
Morrem os astros, porque acabam. Morre
tudo o que acaba, diz-se. Mas que prova?
Só prova que se morre de universo pouco,
do pouco de universo conquistado.
Não há limites para a Vida. Não
aquela que de um salto se formou
lá onde um dia alguns cristais comeram;
nem bem aquela que, animal ou planta,
foi sendo pelo mundo este morrer constante
de vidas que outras vidas alimentam
para que novas vidas surjam que
como primárias células se absorvam.
A Vida Humana, sim, a respirada,
suada, segregada, circulada,
a que é excremento e sangue, a que é semente
e é gozo e é dor e pele que palpita
ligeiramente fria sob ardentes dedos.
Não há limites para ela. É uma injustiça
que sempre se morresse, quando agora
de tanto que matava se não morre.
É o pouco de universo a que se agarram,
para morrer, os que possuem tudo.
O pouco que não basta e que nos mata,
quando como ele a Vida não se amplia,
e é como a pele do ónagro, que se encolhe,
retráctil e submissa, conformada.
É uma injustiça a morte. É cobardia
que alguém a aceite resignadamente.
O estado natural é complacência eterna,
é uma traição ao medo por que somos,
áquilo que nos cabe: ser o espírito
sempre mais vasto do Universo infindo.
O Sol, a Via Láctea, as nebulosas,
teremos e veremos até que
a Vida seja de imortais que somos
no instante em que da morte nos soltamos.
A Morte é deste mundo em que o pecado,
a queda, a falta originária, o mal
é aceitar seja o que for, rendidos.
E Deus não quer que nós, nenhum de nós,
nenhum aceite nada. Ele espera,
como um juiz na meta da corrida
torcendo as mãos de desespero e angústia,
porque nada pode fazer nada e vê
que os corredores desistem, se acomodam,
ou vão tombar exaustos no caminho.
De nós se acresce ele mesmo que será
o espírito que formos, o saber e a força.
Não é nos braços dele que repousamos,
mas ele se encontrará nos nossos braços
quando chegarmos mais além do que ele.
Não nos aguarda – a mim, a ti, a quem amaste,
a quem te amou, a quem te deu o ser –
não nos aguarda, não. Por cada morte
a que nos entregamos ele se vê roubado,
roído pelos ratos do demónio,
o homem natural que aceita a morte,
a natureza que de morte é feita.
Quando a hora chegar em que já tudo
na terra foi humano — carne e sangue —,
não haverá quem sopre nas trombetas
clamando o globo a um corpo só, informe,
um só desejo, um só amor, um sexo.
Fechados sobre a terra, ela nos sendo
e sendo ela nós todos, a ressurreição
é morte desse Deus que nos espera
para espírito seu e carne do Universo.
Para emergir nascemos. O pavor nos traça
este destino claramente visto:
podem os mundos acabar, que a Vida,
voando nos espaços, outros mundos,
há-de encontrar em que se continui.
E, quando o infinito não mais fosse,
e o encontro houvesse de um limite dele,
a Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,
para que em Espaço caiba a Eternidade.

18.4.13

Uma PEC por uma nova família




E se tudo isso fosse divertido, justamente por que os une?*


Tamara é uma das minhas mais queridas amigas. Carioca, ela vive hoje em Israel, com dois filhos lindos, Lucas e Olívia, e o marido, Daniel. Enquanto o Brasil discutia a PEC das domésticas, eu estava por lá, maravilhado com a família deles.

Enquanto batíamos papo, houve um dado momento em que Lucas, 5 anos e 1 mês, desobedeceu a mãe. Tamara imediatamente o lembrou de um castigo: se não se emendasse, não seria autorizado a ajudar a arrumar a casa (!)

Ver Lucas ficar absolutamente triste com o risco de ficar de fora da arrumação – da qual até Olívia, 3, participa – foi muito mais impactante em relação à minha cultura do que qualquer coisa que eu possa falar sobre muçulmanos ou judeus ultraortodoxos. Na casa da Tamara, arrumar a casa é parte da brincadeira – todo mundo participa, sem exceções nem diferenças de gênero.

Não é que o capitalismo esteja fora de casa, nem que isso seja regra no país. Tamara é jornalista free-lancer e Daniel trabalha como engenheiro numa multinacional de processadores. Mas há prioridades: primeiramente, uma decisão a respeito de criar os filhos e um profundo respeito mútuo no casal; além disso, alguns traços que identifico no senso de coletividade da sociedade judaica israelense, que tem exemplos que vão do trabalho em cooperativa (kibutzim) ao Exército, vivenciados por homens e mulheres da enorme classe média do país.

Outra dessas coisas é o shabat – o dia religioso do descanso, que começa ao pôr-do-sol da sexta e termina 24 horas depois. Há várias formas de vivê-lo, mas a maneira mais difundida é a de reunir parentes ou amigos em casa para fazerem um jantar – a maioria dos estabelecimentos está fechada, não há muita saída. O resultado disso é que a classe média e as famílias se frequentam mais do que acontece nas metrópoles do Ocidente. Além disso, tive a impressão de que as pessoas que moram sozinhas lá vivenciam menos as solidões opressoras que temos aqui, pelo mesmo motivo.

O Brasil da nova classe média e das garantias trabalhistas para as empregadas - cuja mão-de-obra declina cada vez mais, uma vez que outros empregos aparecem com salários mais atraentes – pede uma nova ideia de família. Talvez isso nos leve a sermos mais participativos, mais solidários, menos machistas e, quem sabe, menos solitários. Talvez isso até ganhe as ruas, contamine a sociedade e mude as coisas que condenamos tanto nos outros, mas que adoramos ter, seja como pai, seja como patroa.

Pagar pelo direito de ser desigual naquilo que é comum começa em casa: é a pedra fundamental do Brasil. Mas pode mudar com o sabor de uma brincadeira.


*Meramente ilustrativa, a foto não traz os membros da família que descrevo.

11.4.13

Resista à tentação de amar Feliciano




O truco do deputado pastor Marco Feliciano – que afirmou só deixar a Presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara caso José Genoino e João Paulo Cunha  deixem a de Constituição e Justiça – é um marco simbólico do projeto político dos evangélicos.

De uma só vez, Feliciano atraiu para si não apenas os holofotes como a simpatia de setores laicos conservadores, que, embora não concordem com sua vaga na CDH, priorizam a queda dos petistas condenados. Muita gente achou sua fala elogiável, quando na verdade ela apenas usa um absurdo ético para justificar seu próprio absurdo ético; e ainda, pegando carona como “justiceiro” no maior julgamento recente de políticos do país, que ainda ecoa no STF. Isso é miopia.

Institucionalmente, nada impede que Feliciano presida a CDH. Pelo mesmo viés, Genoino e João Paulo puderam, enquanto deputados empossados, assumir suas vagas na CCJ, bem como Blairo Maggi, o “motosserra de ouro”, na de Meio Ambiente. Quem poderia impedi-los era a ação dos "decentes", que, pelo visto, já estão imobilizados pelas alianças para 2014.

Os líderes evangélicos querem influência, sim. Engana-se quem pensa que lhes satisfazem 77 cadeiras no Congresso e o nanico Ministério da Pesca. Desde 2002, a cada eleição, o número de evangélicos somados no Senado e na Câmara aumenta cerca de 30% do total anterior. Se mantiverem essa taxa, chegarão em 2014 a 100 cadeiras, quase 20% dos 513 assentos do Parlamento: um retrato fiel da fração da população apontada pelo censo 2010.

Não basta para eleger um presidente, mas se torna instrumento de coalizão. Não que pentecostais formem bloco hiperunido – Feliciano enfrenta oposição de “irmãos” por suas declarações virulentas, mas, com um pouco mais de cérebro, um evangélico pode chegar a um ministério mais estratégico. Por exemplo, em Israel, o partido-acessório Shas, de orientação ultraortodoxa, acostumou-se por décadas à pasta da Educação, conforme explora o livro "Terra em Transe: democracia ou teocracia", de Guila Flint e Bila Grin Sorj (ed. Civilização Brasileira, 2000).

Em tempo: moralmente, Feliciano se igualou  à mulher do relato bíblico de 1º Reis 3:16-28, que perde o bebê e rouba o filho da colega. Para resolver, o rei-juiz Salomão propõe parti-lo com uma espada: a ladra aceita, afinal, para ela pouco importava o bem maior – a vida do bebê – desde que sua derrota tivesse companhia.