10.3.10

NOVA EMPREITADA: O INFILTRADO

Agora, sou um dos blogueiros na grife feminina Maria Filó. O primeiro post se chama "Roubos e Furtos"
http://www.mariafilo.com.br/blog/?p=239

5.3.10

E ELA SE LEVANTOU PARA BUSCAR ÁGUA
(publicada no Destak)


Os lençóis ainda estavam quentes, e eu ainda não havia notado os fios de cabelo que também estavam deitados na cama conosco quando ela se levantou e foi até a cozinha para buscar água.


Num lance de sorte, virei o rosto e ainda pude ver suas costas nuas, suas pernas olímpicas e o ritmo binário de suas nádegas em marcha, como se buscar um copo d'água fosse uma missão humanitária entregue a alguém que preza o estrito cumprimento do dever.


Sim, ela caminhava até a cozinha como um soldado vitorioso, que deixava para trás de si um inimigo vencido. Como uma enfermeira que conhece as obrigações de seu uniforme branco e se apega a elas mais do que ao sentimento de empatia pelo sofrimento alheio.


Ela também pega água como uma gueixa.


Assim que ela sumiu no corredor, tombei a cabeça para o outro lado, onde a parede branca metaforizava a impossibilidade de outras belezas naquele mesmo quarto depois daquela epifania maior.


A televisão calada, o aparelho de som em silêncio, nenhum pássaro na janela, o resto do mundo respirava em raros ruídos, como as plateias de teatro que tossem para dentro no meio de uma cena crucial.


E sua ida me deu consciência de um vazio mais fundo que todas as privações físicas já sentidas. Nenhuma fome, nenhum calor ou frio na história da minha humanidade mereceram mais autoanálise do que a secura despertada pelo momento em que ela se levantou.


E o atrito da língua no palato movimentava um ar seco como Brasília. Eu tinha os olhos úmidos de um largo cansaço, e o suor dos lençóis se havia evaporado, soprando na pele a necessidade de recorrer à água que viria, como uma bênção, da geladeira dela.


Tentei imaginar de onde viria a água. Poderia ser uma mineral sem gás de 1,5 litro, como as que bebo do gargalo quando jogo bola. Ou uma das bojudas garrafas com tampa de plástico e abas retráteis que imitam as dos bules. Ou das de vidro verde elegante e opaco.


Decidi que vem da moringa de alumínio que a minha avó materna tinha, com o metal suado pelo frescor potável que prometia às gargantas mais áridas.


E, quando ela voltar, nua, trazendo aquele grande copo d'água nas suas mãos pequenas - nas quais ele ganhará a forma de um enorme balde transparente de vida -, o milagre efêmero da satisfação humana se recriará. Até que seja preciso outro gole dela.
AO CARNAVAL, UM MERECIDO EPÍLOGO
(publicada no Destak em 19.fev.2010)

Vestido como um dos 300 de Esparta, fui um dos muitos heróis do Carnaval mais quente dos últimos 50 anos no Rio. Com pés revestidos de esparadrapo e gaze para aguentar a sandália grega, caminhei por vários blocos, respeitei tradições e vi as novas serem criadas. Testemunhei a folia e posso decretar que, sim, a Belle Époque foi restaurada no Rio a partir de 2010.

Seduzi-me no Bloco das Trepadeiras, moças de finíssimo trato revestidas de galhos e folhas verdes, rebatizadas como Maria Sem-Vergonha, Comigo Ninguém Phode e Costela de Adão, entre outras. Vi Pedro Ladeira, candidato a candidato em 2010, homem que, de terno e gravata, ignorou a sensação térmica cinquentenária e distribuiu programa de governo que criminalizava o toco - ou seja, o fora - durante o Carnaval. Louco.

Vi escritores consagrados vestidos de empregada, ostentando bigodes freddie-mercuryanos, varrendo de si os fardos do dia a dia e criando personagens e cenários para o futuro melhor que a cidade merece deles.

Sei que Paulinho da Viola estava incógnito de árabe no formidável Sassaricando, na Glória, e mais não digo, porque Paulinho é assim, de imensa elegância e discrição.

Circulei no Boitatá, segui o Boi-Tolo e me impressionei com a fartura de carnes e carniças no baile de máscaras a céu aberto. Estar sem fantasia na Praça 15 e na 1º de Março era inafiançável até para os mais paulistas. Ali, gritava-se a plenos pulmões, parodiando Obina, que "O Rio é melhor que Salvador" - rivalidade que se instala por vias dúbias, como reação ao Choque de Ordem nos blocos (que, diga-se, foi saudável).

Subi o Volta, Alice! e desci a tempo de ver o Epa Rei atravessar ruas de pedestres no Centro, do Real Gabinete Português ao Consulado da Suécia, sem precisar comunicar à prefeitura. Aplaudi a ideia de usarmos o anfiteatro do Buraco do Lume e escalarmos depois os degraus da Alerj, triunfantes e espontâneos. Lá, soube por alto que Arruda ainda se vestia de Irmão Metralha numa jaula do DF.

Do sambódromo - juro! -, só soube na apuração, porque sou um Paulo Barros de mim mesmo.

Vi o Bagunça o Meu Coreto, o Último Gole e honrei os blocos de praça, em que crianças e adultos não precisam ser separados. Naqueles espaços, virei menino.

Vi a Orquestra Voadora varrer o parque do Flamengo sob sol inclemente e escassez de líquidos. Lembrou o sofrido Círio de Nazaré, mas soube que posteriormente veio a Era de Aquário sob as árvores de Burle Marx.

E com memórias que guardarei na retina, desarmei meu espartano torto (um rei Leônidas da Silva?) e fui trabalhar na quarta, depois do Me Beija que Sou Cineasta, certo de que jamais haverá Carnaval como este.