9.10.13

A inocência útil biografada




O debate sobre as biografias tem a ver com a ideia da democracia que se deseja. A pergunta mais contundente da carta aberta de Benjamin Moser a Caetano Veloso, na Ilustrada desta quarta, soa a clichê surrado, mas há em certos clichês uma honestidade indiscutível: que país Caetano quer deixar para os seus filhos, considerada sua política de escrita de biografias?

Lido ao lado do americano Jon Lee Anderson n'O Globo, o também americano e biógrafo de Clarice Lispector fica ainda mais completo. Autor de "Che", Anderson afirma que "a sociedade não pode controlar [preventivamente] essa situação [entre a ética do biógrafo e a privacidade do biografado], especialmente quando ela tem relação com figuras políticas".

É natural que americanos ensinem essa posição: a Constituição deles é histórica defensora do direito à liberdade de expressão como coluna-mestra da democracia. Sem liberdade de expressão, não existe liberdade de religião, nem existe liberdade de informação; a liberdade de pensamento, mesmo que exista textualmente, já nasce com perspectivas diminuídas de desenvolvimento.

Por isso, não cabe aqui fazer qualquer paralelo com a invasão de privacidades perpetrada recentemente pelo governo dos Estados Unidos, que decidiu aproveitar brecha para ser inconstitucional, que está à margem de sua própria lei e que entrará para a história jogando lama em si mesmo. A belíssima agenda de liberdades que é a sua Constituição, pelo contrário, não se mancha.

(Aliás, a restrição à liberdade de expressão é prima-irmã do desacato à autoridade, esse subterfúgio que justifica muitas das prisões às quais Caetano aparentemente se opõe)

Voltando ao legado que a cúpula da MPB pretende, eis o principal risco que a democracia vive quando artistas abraçam o projeto obscurantista do Procure Saber: que as figuras políticas se apropriem das prerrogativas estabelecidas pelos artistas escaldados pelo jornalismo de celebridades; a partir disso, esses políticos conseguiriam restringir ao máximo os dados de interesse público em suas biografias.

Na verdade, já conseguem, manejando abuso de poder econômico e advogados caros perante juízes lenientes com base em leis de cunho ditatorial ou interpretações inconstitucionais. Os exemplos são variados e vergonhosamente recentes.

Por isso é imperdoável a inocência útil – na melhor das hipóteses – de tantos artistas censurados durante a ditadura.

O artigo 5º, inciso X da Constituição Federal, citado por Francisco Bosco em "O Globo", afirma claramente que são invioláveis a intimidade, a privacidade, a honra e a imagem das pessoas. Bosco, porém, não redige o restante do artigo: "assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

Ou seja: primeiro é preciso que alguém julgue de forma imparcial se houve a suposta violação, até para que não haja prejuízo ao artigo 220 da mesma Constituição, que garante a impossibilidade de censura prévia a qualquer manifestação de expressão. Não dá para expulsar o zagueiro antes que ele cometa a falta, por mais preciosas que sejam as pernas do atacante.

É esse mesmo Artigo 220 que torna anacrônicos os preceitos dos artigos 20 e 21 do Código Civil, que se referem à necessidade de autorização da pessoa pública a respeito de informação sua de interesse público. É desnecessário dizer que a censura seria ainda inconstitucional, mas, como o tempo é de analfabetos funcionais, então faço questão de sublinhar: a censura decorrente desses artigos é inconstitucional, como seria qualquer outra.

O texto do artigo 220 é tão claro, tão nítido e tão nacional em sua ausência de conjunções adversativas que não há por que pensar em quaisquer poréns que favoreçam censura, ou mesmo em necessidades de empréstimos de legislação estrangeira. É um parágrafo que deveria ser lido e relido por todo artista brasileiro, ao som do "Cálice" nas vozes de Chico Buarque e Milton Nascimento, outros dos que hoje emprestam seus nomes para os obscurantistas:

 A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.


Lidos esses trechos, fica claro que este debate é um Chico dando novos significados a "A Voz do Dono e o Dono da Voz", é um Caetano não entendendo nada do Caetano de "É Proibido Proibir", é a coronelização da Música Popular Burocrata, que passou procuração às noções de cultura de Paula Lavigne a fim de um troco a mais, sem se importar com tudo que ainda precisamos procurar saber.

Deixo ainda a Francisco Bosco, pessoa da minha mais alta consideração, alguns questionamentos.

Você realmente acredita em si quando diz que a vida pública é totalmente dissociável da vida privada? Crê realmente ser possível, numa biografia de artista ou político, podar os fatos íntimos que formam a personalidade do autor, de suas obras e de seus feitos?

Eu não acredito numa biografia de Mahler que não cite a disfunção erétil dele e os adultérios de Alma. Não acredito numa biografia de Hannah Arendt sem mencionar sua relação com Heidegger. Não acredito numa biografia de Gilberto Gil que não esboce os eventos que levaram à composição de "Drão". Não acredito numa biografia de João Bosco que não conte a cisão pública e amplamente noticiada da parceria com Aldir Blanc, que inviabilizou temporariamente uma produção que o Brasil aprendeu a apreciar como um dos triunfos da MPB. São fatos tão inequivocamente refletidos nas produções artísticas dos supracitados que chega a ser dever contá-los.

Nada desses eventos precisa de detalhes sórdidos, descrições naturalistas ou falas inventadas – não é desse jornalismo de celebridades que precisamos nas biografias que ainda não foram escritas. O que é necessário é acreditar na hipótese não rara do biógrafo ético, como Ruy Castro, Mario Magalhães, Lira Neto, Benjamin Moser e tantos outros. Acreditar nisso tanto para a política, que nos permite analisar nossa história, quanto para as artes, que nos fazem senti-la. Acreditar no bem em potencial que isso lega à cultura brasileira, hoje em franco processo de esvaziamento de significados quanto de infantilização (compare as letras que cantamos nos sucessos de hoje). Há uma história de ideais a serem resgatados, nem que seja para lamentar o tempo perdido. No mínimo, o direito a essa memória tem que ser legado às gerações que nascem num momento artístico cada vez mais pródigo em sacolejos e avesso a maiores significados.

Em tempo: ninguém impede os artistas de escreverem suas autobiografias ou de patrocinarem relatos autorizados visando lucro. Que eles ditem suas memórias com carinho, peçam indenização quando acharem que devem e abram mão da coroa absolutista que, depois de tantos anos prestados à democracia, eles hoje creem merecer.

Em tempo 2: eu gostaria de ver isto discutido entre as bandeiras alçadas na Feira de Frankfurt, se os escritores, que fizeram discursos políticos elogiáveis, ainda tiverem espaço para debater cultura brasileira.

3.10.13

Existirá vida após a des-PM no Rio?

Ser carioca é ter a noção clara de que o noticiário de crimes contra a vida recebe enorme contribuição da nossa bicentenária Polícia Militar. Nos casos de repercussão, é inegável um monopólio policial na autoria ou na suspeita.

Relembremos: Vigário Geral, Candelária, Geisa e Sandro do ônibus 174, o menino João Roberto, a juíza Patrícia Acioli, o menino Juan e os inúmeros milicianos que saem de corporações militares. 

Reforça essa certeza o desfecho do inquérito policial do pedreiro Amarildo – no mesmo dia em que policiais em ação durante os protestos dos professores na Cinelândia algemaram um rapaz via flagrante falso de três morteiros, que desistiram de registrar, talvez por instinto de sobrevivência. O flagrante é anunciado – "Está com três morteiros", diz o policial – mas não chega aos autos. Não importa: o motivo das humilhantes algemas e do encaminhamento à delegacia foi o tal flagrante.


Amarildo: vítima de tortura, segundo o inquérito policial


Se Amarildo foi torturado por PMs com choques elétricos e sufocamento e morto em dependência da UPP da Rocinha, como concluiu o inquérito, provaremos ao mundo que, a menos de um ano da final de Copa, não somos um bom lugar para viver, não nos pacificamos ao pé da letra, não humanizamos o tratamento dado às populações carentes atendidas pelas UPPs.

É ainda mais grave porque as UPPs foram anunciadas pelo Governo do Estado como planejadas para receber policiais recém-formados, “sem vícios de conduta” – e o treinamento deles, pelo visto, continua igual ao dos veteranos que policiam manifestações: apagar incêndios com gasolina.

No vídeo em que os policiais armam o flagrante dos morteiros, temos pelo menos duas câmeras filmando tudo. Impressiona a indiscrição dos policiais, a cara de pau, o destemor diante de qualquer risco de punição que lhes possa sobrevir.

Desmilitarizar a polícia virou um mantra, a verdade autoevidente que corrigiria todo o sistema. Não é. Se um dia ocorrer, será uma experiência. Desmilitarizá-la será aceitar que decida entrar em greve, por exemplo, um luxo para um país com índices de violência superiores aos de zonas conflagradas. E tudo isso com as características que as greves têm adquirido no país, como a de servir de trampolim midiático para partidos e políticos muito pouco preocupados com o bem-estar popular.

Por outro lado, será a aposta de que, num regime civil de trabalho, a polícia fluminense não aja como se estivesse em guerra no Afeganistão. Mas eu escrevo essas coisas e me lembro da chuva de tiros disparada neste ano por um helicóptero da Polícia Civil na favela do Rola, arriscando vidas e baleando paredes em toda a vizinhança. Repito: Polícia Civil. A missão? A execução sumária de um traficante, uma operação de guerra que mancha qualquer estado que se diga democrático.

O que quero dizer é que civilizar a PM não significa transformá-la imediatamente nas polícias de outras cidades do mundo, sacadas como exemplo pelos sociólogos e antropológos mais bem-intencionados. Ainda vamos ter uma cultura policial carrasca, com pouco pudor de matar, situações de alta tensão incomuns no Ocidente civilizado e nossa atávica corrupção. Talvez valha tentar, mas talvez falhe, no cenário descrito.

Mas é muito difícil que surja um desastre pior que o do presente.

22.8.13

O dilema de Emicida




O cantor Emicida, um dos mais ativos cantores/ativistas do país, viu sua credibilidade entre as feministas arranhada, após a repercussão de “Trepadeira”.

“Trepadeira”, em resumo, é a crônica de um rancor. Usando vasto vocabulário botânico, um homem se arrepende de ter se dedicado a uma mulher que não valia a pena: nas palavras dele, ela “dá para todo mundo” e merece “uma surra de espada-de-São-Jorge”.

A dor de todo abandonado ou abandonada normalmente apresenta como sintoma a mais completa desqualificação da pessoa que abandonou. Um menosprezo, o desdém que caracteriza quem sempre quis comprar, mas acabou vendido pela paixão – e o rapaz da canção não faz outra coisa.

A moça da letra era a mulher da vida do personagem da canção – que não necessariamente é autobiográfica – e isso é descrito por todas as flores às quais ela é comparada. Mas deu ruim, "ela é rueira", "ela dá para todo mundo".

A maioria das críticas feministas abre mão da ideia de que é apenas uma canção, quase uma fala teatral de um personagem que faz um desabafo. Ficção enfim. Mas traição para elas.

Talvez Emicida tenha pagado o preço de seu engajamento pelas minorias – algo de que ninguém deve duvidar. Não é possível a esta altura tomar a canção como a saída do armário de um machista. O comportamento de Emicida sempre foi o de enfrentamento ao establishment em nome das comunidades e minorias que o aplaudem, e ele sempre se mostrou simpático à agenda progressista.

O que se questiona é: um artista tão politizado de rap – um estilo que se pauta pela autenticidade da periferia – está condenado a ser sempre real? Não há espaço para criar personagens – que sim, podem ser criticados como qualquer vilão de novela?

Talvez por ter sido tão autêntico como manda o figurino de seu estilo, Emicida deu a entender que jamais poderia se aventurar a falar de sentimentos que existem, a cantar as emoções de quem quer que seja: estava aprisionado, como artista autêntico, a ser sempre tomado em primeira pessoa e ao pé da letra.

Eu acredito que o Brasil tem direito a alguma ficção, a alguma crônica de costumes, a uma expressão de rancor de quem foi esnobado por alguém que não quis um compromisso sério – sentimento que existe até nos corações mais liberais e nas bibliografias mais extensas. E uma canção nem sempre é um discurso. Às vezes, um "Tropa de Elite" é só um filme de entretenimento, e não uma mensagem-denúncia documental fascista.

Como Emicida vai reagir à patrulha ideológica é a incógnita. Não gosto muito de hip hop, mas prefiro que ele cante "Trepadeira" em vez de se censurar. Tenho certeza de que as meninas do Bloco das Trepadeiras, da sambista carioca Maria Thalita, vão recebê-lo com mais humor e amor.

14.8.13

Pablo Capilé: e por falar em calote



                                          Reprodução/TV Cultura


Por falar em calote

Convém visitar o site da Justiça do MT, onde Pablo Capilé é cobrado desde 2007 por um cheque-caução sem fundo de R$ 12 mil passado ao Hotel Master, de Cuiabá, parceiro do Fora do Eixo no Festival Calango.

A Justiça não consegue intimá-lo, afinal, é um homem de muitas casas América Latina afora.

O número do processo é este: 307098 - 2007 \ 404. Nr: 16356-23.2007.811.0041.
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/38004915/djmt-19-06-2012-pg-81

Podem ser feitas as consultas necessárias ouvindo as pessoas: a advogada Ana Kelcia tem prazer em explicar a dificuldade de executar a cobrança. O valor corrigido hoje já passa dos R$ 30 mil.

Outro hotel, o Abudi, também protocolou petição junto à Secretaria da Cultura local, mas desistiu de mover ação. Isso significou R$ 5 mil que o Fora do Eixo embolsou na marra.

Vai morar com alguém? Saiba quem é.



Portal de Transparência? Minha contribuição
Acho linda a ideia. Convém informar quantos quadros do Fora do Eixo estão sentados próximos a verdadeiras jazidas de dinheiro público em forma de edital.

Começo por Ney Hugo Jacinto Silva, ex-Macaco Bong (lembrem-se, a banda ideal) e um dos líderes da Casa Fora do Eixo de Porto Alegre, que é titular no Conselho Nacional de Política Cultural, no colegiado de Música, um baixista que toca lobby de ouvido. Também incluo Ivan Ferraro, conselheiro do segmento de Música Popular, Fora do Eixo no Ceará.

O que é o Conselho Nacional de Política Cultural? É o órgão do Ministério da Cultura onde se determinam as diretrizes de aplicação do Fundo Nacional de Cultura e a aprovação de projetos de financiamento.

Com um lobby bem postado, você sai na frente de qualquer captador. Pode inclusive dar ideias como a de um "financiamento de rede" – algo que já está presente, por exemplo, nos editais da Petrobras.

Poderiam falar também de como estão situados estrategicamente:
- Rodrigo Savazoni, ex-Existe Amor em SP, chefe de gabinete na Secretaria Municipal da Cultura da São Paulo;
- Fabrício Nobre, superintendente de Ação Cultural da Secretaria da Cultura de Goiás, produtor do Festival Bananada;
- Rayan Lins, Gerente Executivo de Promoção Cultural da Secretaria de Cultura da Paraíba até julho do ano passado* e Fora do Eixo local, produtor do Festival Mundo;

Há outros nomes, mas eu ainda confio na utilidade de um Portal da Transparência.



Mas Márvio, é errado fazer política?
Não, nunca foi. Mas uma ideologia que se contrapõe a uma "cultura capitalista desumanizada" fazer tanta questão de irrigar e expandir seu sistema para depois costurar parcerias empresariais/políticas, sem se preocupar em valorizar os artistas ou a obra, é muito capitalista também.

Ou então partamos logo do princípio de que o artista tem mais é que se foder.

Cuiabá, síndrome do Ninho Vazio
O Festival Calango, principal evento do Fora do Eixo em Cuiabá, não existe há pelo menos 2 anos. O Espaço Cubo, onde tudo começou, não existe mais. A cidade histórica do Fora do Eixo foi abandonada, depois que o projeto migrou para o eixo, em busca de interagir com os movimentos sociais. Só restam arremedos, se comparados com o protagonismo fora do eixo que o próprio Pablo Capilé vendia.

Cuiabá serviu enquanto não era pequena. Hoje, o único movimento perceptível por lá é dos oficiais de Justiça.

"Foi apenas uma experiência ruim sua"
- Beatriz Seigner, São Paulo, ocultação e retardo de cachê;
- Daniel Peixoto, Fortaleza, negligência na produção de CDs e prejuízo à carreira;
- Bruno Kayapy, Cuiabá, de artista ideal a afastado convicto;
- Vanguart;
- Abril Pro Rock, Goiânia Noise, Senhor F e outros festivais históricos do país;
- O Coletivo Soma;
- A Favela do Moinho
- Banda Lisabi, calote no Cedo e Sentado desde 2011, não pago;
- Críticas do próprio MPL, movimento desmonetarizador das passagens (!!!)
- O hotel Master, em Cuiabá;
- Laís Bellini;
- Todas as bandas que acabaram quando o circuito se fechou num esquema de trocas e parceria em que não bastava ser artista, e sim unidade de captação - essa desmonetarização incrível, diluída num mosaico de parcialidades.

Você também tem uma história de calote? Abra a boca.

Do que falo quando falo de Fora do Eixo
O artista desmonetarizado existe há séculos. Não foi inventado nos últimos anos. Ele antes andava por tavernas, igrejas e bares, tocava por pratos de comida e tentava viver com seu compromisso. Ele viajava do próprio bolso para tocar e recebia nas mais diferentes moedas: flertes, drogas, vaidade, certezas.

A única coisa que mudou é que ele hoje é explorado por aqueles detentores de circuitos ditos alternativos que propagandearam ser um novo caminho. Gente que se apropria de um dinheiro público que deveria, segundo instruções de editais claríssimos, remunerar o artista.

Gente que se apresenta como A SAÍDA para quem não está no mainstream.

Se há quem goste de receber notas de Banco Imobiliário pelo seu trabalho, ou viver no sistema autoral pré-Renascença, não vejo problema algum. O país tem liberdade de crença.

Repugnante é ver alguém se arvorar a Robin Hood pós-moderno, enquanto sistematicamente atrasa, oculta e sonega os cachês que foram combinados - não interessa se são R$ 20 mil ou se são apenas R$ 250. É falta de caráter.


* Errata: e não secretário de Cultura da Paraíba, como antes referido.


Leia o post anterior sobre o Fora do Eixo aqui. Aguarde um próximo artigo.

12.8.13

Pablo Capilé e a verdade sobre sua política de não pagar cachês



1. Quem sou
Meu nome é Márvio dos Anjos. Sou hoje mais conhecido como jornalista (com passagens por TV Globo, Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil); hoje diretor editorial do jornal Destak e colunista do GloboEsporte.com.

Mas já fui muito atuante como cantor e compositor das bandas Glamourama (2002/03) e Cabaret (2004-último show em 2010). O Cabaret hoje se encontra desativado, sem shows na agenda, e com um disco gravado em 2009, mas ainda inédito.
Entre 2003 e 2009, toquei em 10 capitais do país, participei de programas de TV (Programa do Jô, Código MTV) e participei de muitos festivais independentes: Mada (Natal), Calango (Cuiabá), Mundo (João Pessoa), Se Rasgum no Rock (Belém), Panela Rock (Fortaleza), Ruído (Rio), Grito Rock (Rio), Vaca Amarela (Goiânia).


Nunca tive um produtor, ou agente. Nunca fui organizador de festival. Tanto Glamourama quanto Cabaret foram produzidos por mim mesmo até a minha desistência diante das portas que se fechavam no circuito, à medida que comecei a criticar as mudanças de rumo, que considero até hoje de má-fé. Não sou filiado a partido algum.

É com base nessas experiências que analiso Pablo Capilé e o Fora do Eixo. Sou crítico de primeira hora, desde 2008, quando percebi as mudanças de rumo que aconteciam em tudo que eles contaminavam com uma política perversa de apropriações de capital cultural e de dinheiro público.




2. A verdade sobre Pablo Capilé e a política de não pagar cachês

Em 9 de agosto deste ano, Pablo Capilé, bombardeado por denúncias desde a aparição do Mídia Ninja no Roda Viva, deu sua opinião em relação ao não-pagamento de cachês. Disse ao UOL que defende a remuneração de artistas. (Leia aqui)

Só se mudou de ideia. Porque no exato momento em que os festivais da Abrafin ganharam dinheiro da Petrobras (o 1o. edital é de 2007, o festival dele passa a ser beneficiado em 2008), ele passou a defender que os artistas mais novos e menos conhecidos - que tocavam por apenas 20 minutos nos festivais - não ganhassem passagem nem cachê. 


(A Abrafin é a Associação Brasileira de Festivais Independentes, criada em 2005 para negociar fomentos em bloco)

Capilé dizia da forma mais absolutamente cínica possível, e não apenas em uma entrevista, que artista iniciante não deveria cobrar cachê. Era uma política institucional do Fora do Eixo e seus festivais rezavam por essa cartilha.



Aliás, sobre pagar cachês, o texto do 1o. edital da Petrobras para Festivais (2007) era bem claro no que tange o seu 11o. pré-requisito: 

"Todos os artistas devem ser remunerados."

Veja neste vídeo de 2008 como carismático Pablo Capilé se outorga o juízo, com direito a slogan, de delimitar em que circunstâncias um artista é artista para aquele "momento". 

 
Esse vídeo é de 2008, quando o orçamento do Festival Calango, apoiado pela Petrobras e outras fontes, JÁ ERA de R$ 600 mil. 


Nesse mesmo ano, numa palestra do Abril Pro Rock (que tinha orçamento de R$ 1 milhão, engordado pela Petrobras), eu testemunhei Capilé dizer a mesma coisa: foi no auditório da Livraria Cultura. Eu cobria os shows para a Folha de S. Paulo. 

Não acreditei quando ouvi. Fui interpelá-lo depois. Disse-lhe que ele era criminoso em dizer isso num momento em que o dinheiro da Petrobras começava a fluir. Para ele, o importante era ver a cena crescer e depois quem sabe repartir.



Não foi uma politica momentânea. Dois anos depois, a opinião dele não mudava. Pablo, já com a maioria na Abrafin, deu estas declarações ao zine "O Inimigo", se autodenominando sem qualquer pudor:



"(...) [é preciso] entender os festivais mais como mostra do que como plano de sustentabilidade financeira. Eu sou dentro da ABRAFIN um defensor de que não se deveria pagar cachê as bandas. Festival é uma mostra." (extraído do blog de Rogério Skylab)


3. Por que o argumento de que o cachê inviabiliza o festival é uma falácia? 

a.Quem capta para qualquer evento cultural sabe que o cachê e as passagens são parte dos encargos: senão você está repassando o prejuízo para o artista e, em vez de contribuir para quem realmente move a cultura, você está apenas se aproveitando da ânsia de visibilidade que normalmente o artista novo tem. E aquele edital deixava bem claro que o artista tinha que ser remunerado.

b. Para balizar o que seria um cachê, a tabela da Ordem dos Músicos já seria uma excelente referência. Se o show não chegasse a uma hora, que se pagasse uma parcela disso. Os festivais, porém, optaram por uma sub-remuneração: o piso em alguns desses festivais variava de R$ 500 a R$ 1.000 POR BANDA, e não por integrante. Sei porque me foi oferecido por um desses festivais e eu recusei: não fazia sentido, após 3 anos de atuação em festivais, sair do Rio para o Nordeste nesses termos e tocar por menos de meia hora.

c. Os festivais apostavam no gigantismo para se cobrir de números de powerpoint, e esse modelo tinha que ser revisto para ser sustentável. De que adiantava ter 50 bandas, se a maioria delas faria shows de 20 minutos? Seria mais interessante ter menos bandas, avaliadas por uma curadoria competente, até para ter sentido o esforço de pagar-lhes as passagens e o cachê. 

d. Se fosse para manter os números, o mais correto seria valorizar os artistas da vizinhança, os quais não precisariam de hospedagem nem de passagens, mas que ainda assim teriam que ser remunerados de alguma forma.  Só que, para fins de criar a rede, era importante se aproveitar do voluntarismo típico de bandas jovens de rock, que topavam arcar com o prejuízo em seus inícios.

Era preciso juntar dezenas de bandas, de forma que elas ficassem o mais anônimas possível. As que agregavam valor (brasileiros mais estabelecidos e gringos de qualquer nível) recebiam cachê e não precisavam se horizontalizar. 

Sim, Capilé apenas fazia o branding do Fora do Eixo, travestindo-o de política cultural coletivista e hoje, em última instância, de movimento social. O Fora do Eixo é tão movimento social quanto o TelexFree.




4. Mais sobre o projeto de aniquilação do novo artista em nome do branding

Por isso, faz total sentido comparar o relato de Beatriz Seigner, primeira denunciante contra o Fora do Eixo, com o de Rafael Vilela, um dos primeiros membros-defensores do Fora do Eixo:

Beatriz diz: 

O susto veio (..) porque o Pablo Capilé dizia que não deveria haver curadoria dos filmes a serem exibidos neste circuito de cineclubes, que se a Xuxa liberasse os filmes dela, eles seguramente fariam campanha para estes filmes serem consumidos pois dariam mais visibilidade ao Fora do Eixo, e trariam mais pessoas para ‘curtir’ as fotos e a rede deles – pessoas estas que ele contabilizaria, para seus patrocinadores tanto no âmbito público, quanto privado. “Olha só quantas pessoas fizemos sair de suas casas”. E que ele era contra pagar cachês aos artistas, pois se pagasse valorizaria a atividade dos mesmos e incentivaria a pessoa ‘lá na ponta’ da rede, como eles dizem, a serem artistas e não ‘DUTO’ como ele precisava. Eu perguntei o que ele queria dizer com “duto”, ele falou sem a menor cerimônia: “duto, os canos por onde passam o esgoto”.  

Rafael, em defesa do FdE, descreve seu trabalho: 

Nesse bolo todo assumimos um processo radical de autoria coletiva das imagens, por entender que não é impossivel, no processo criativo da fotografia e do jornalismo, entender qualquer atividade como ação individual. Quando estamos documentando qualquer pauta, chegamos com um ponto de vista que é fruto de nosso contexto (...). A empatia com os fotografados, suas histórias e suas vidas é sempre um encontro de dois mundos, dois grandes indivíduos em diálogo, cada retrato tem 50% do fotógrafo e 50% do fotografado. Ainda, a edição, escolha do material final e difusão envolvem dezenas de outras pessoas. (...) Como, então, imaginar uma fotografia, fruto do nosso encontro com o mundo, pertencente a uma pessoa só, sozinha? Quando nada é de ninguém, tudo é de todos e a gente voa. 


Acho que Rafael nunca imaginou que, para o mesmo Pablo Capilé que vê valor num filme da Xuxa, eventuais exposições de Bob Wolfenson, Sebastião Salgado e Evandro Teixeira nas casas Fora do Eixo JAMAIS seriam tratadas como a Casa Fora do Eixo o ensinou a tratar a própria produção. 

Rafael é apenas mais um cavalo no qual o Fora do Eixo monta - exatamente como era o Macaco Bong na música. 




5. O case Macaco Bong



                                         O trio Macaco Bong, com Kayapy à frente


O Macaco Bong, banda de Cuiabá, era o conceito ideal de artista para Pablo Capilé, como pudemos ver no vídeo postado acima. Repare que há um claro discurso entre o artista "preguiçoso" e o artista atuante, que tem algo a trocar além de sua arte. 

Como se no Brasil não houvesse um número imenso de artistas que trabalham em outras ocupações para pagar suas contas, Capilé vendeu a ideia de que todo artista que não trabalhasse 100% na rede que ele conduzia estava em casa esperando o convite para se tornar milionário. Muita gente comprou esse discurso.

O Macaco Bong era o ideal. Uma entrega total ao conceito de rede. Davam 100% do cachê ao FdE, moravam na Casa Fora do Eixo de SP, faziam direção de palco e pilotavam mesa de som nos festivais em que iam também para tocar. Eram o cavalo Sansão da "Revolução dos Bichos", de George Orwell, que dizia "Trabalharei ainda mais" em nome da ordem mantida pelos porcos-chefes. E ganhava em cards.

Quando eu comecei a criticar publicamente o Fora do Eixo, Bruno Kayapy, guitarrista e principal figura da banda, me deixou claro que eu era o inimigo. "Ou tá com nóis ou não tá, a parada é assim, mano, e se não estiver, acabou, é guerra", me disse ele quando tocamos no Festival Mundo, de João Pessoa, em 20 de outubro de 2008.



Mas o tempo passa e as circunstâncias mudam.

Leia o que Kayapy disse aos repórteres Amauri Stambowski e Mateus Potumati, da revista Soma, em abril deste ano:



Você passou por problemas de saúde sérios nos últimos anos. Como isso se refletiu na banda?

Em 2009 eu tive um distúrbio intestinal e surgiu um tumor. Tive que ficar seis meses sem tocar, um bom tempo internado. De certa forma virou um tabu, porque naquela altura, se saísse uma noticia dessas, seria muito perigoso para a imagem institucional do projeto. Eu estava altamente magoado por ninguém ter ido me visitar no hospital e se eu falasse naquela pegada de rancor poderia acabar prejudicando até mesmo o processo de mudança do Macaco Bong. Eu também era muito novo, não cuidava da minha saúde direito, a gente fumava muito, bebia muita Coca­Cola, não bebia água direito, era muito louco. O bagulho era assim: se o trago do cigarro tava bom, não dava dor no estômago, ok, era hora de sentar e trampar. Quando batia aquela larica, cada um ia lá, pegava um copo de Coca-Cola e acendia outro Marlboro e voltava a trampar. Quando batia aquela mega fome desgraçada, a gente ia na esquina comer, fumando um cigarro, comia uns salgados e voltava fumando outro cigarro. Só dá para fazer isso enquanto se é jovem. Porém hoje eu tenho uma rotina mais saudável, minha qualidade de sono é melhor, tive que educar radicalmente minha alimentação após a retirada do tumor. Felizmente deu tudo certo, sem riscos, sem sequelas. (íntegra aqui)



Na mão do Fora do Eixo de Pablo Capilé, a arte perde seu valor subjetivo e vale apenas por sua utilidade. Doente, Kayapy, o músico da banda mais importante do cenário que ele vislumbrara, não merecia nem uma visita. 


EM TEMPO
No último domingo, (11 de agosto de 2013), Bruno Kayapy decidiu deixar claro em sua página no Facebook, a quem interessar possa, que sua banda não tem mais qualquer laço com o Fora do Eixo. 

Num próximo artigo, falaremos mais das políticas culturais perversas e parasitárias de Pablo Capilé e o Fora do Eixo.














18.7.13

"Sorria, PM, você está sendo filmado"



Centro Integrado de Comando e Controle: nenhum streaming?



Os acontecimentos da quarta, no Leblon, mostram o fim do romance entre a juventude zona sul e a PM do Rio, que surgiu na esteira de “Tropa de Elite” e das UPPs.

E veio pelas mãos de uma nova forma de jornalismo que surgiu com as passeatas: o streaming ao vivo e independente, de canais como PósTV, Mídia Ninja (braço audiovisual criado em SP pelo Fora do Eixo, coletivo político-cultural aliado ao PT, segundo o próprio Rui Falcão, presidente do partido, no "Roda Viva") e outros.

Com câmeras de celular 4G e voluntarismo, transmitiram as cenas que as emissoras de TV – agora alvo dos protestos – só mostravam por helicópteros. Revolucionaram e incentivaram muitos outros a fazerem o mesmo, como autodefesa e como gesto que realmente desafia o lado mais mofado da violência de Estado. Se as forças do Estado são capazes de tantos erros na contenção de manifestações, é de se pensar (e em muitos casos lembrar) o que fazem onde nada se registra.

Conseguiram também o que era o sonho de nove em cada 10 blogueiros bancados pelo PT: provar a obsolescência da mídia estabelecida. Em pelo menos dois aspectos isso está bem claro: a cobertura sem cortes da violência policial e a tradução do que ocorre nas ruas são muito mais ágeis por essas transmissões independentes.

A única saída da PM – se é que há uma – é adotar a mesma arma: filmar e transmitir ao vivo na web suas ações, no asfalto ou no morro, sem medo da transparência, no mínimo para comparar as versões. Não adianta postar no YouTube apenas alguns vídeos editados, se a polícia é justamente o lado que está sob suspeita.

Se são os “vândalos” que iniciam os combates, que isso seja demonstrado, para que as imagens da violência não sejam capitalizadas pelo lado que talvez a provoque mirando maior cacife político contra quem comanda as polícias.

Se meninos podem fazer isso, o Centro Integrado de Comando e Controle, aberto em maio, também pode. Se não puderem – já que se recusam até a manter as identificações nas lapelas antes as câmeras independentes– é porque ficou claro que o modelo militarizado da polícia chegou a um beco sem saída.

Em tempo: não pode o governador Cabral dizer que seus rivais querem “antecipar o calendário eleitoral”, se ele mesmo cogitou de renunciar para agilizar a reeleição de Pezão, que confirmou isto em outubro de 2012 ao jornal “Extra”. Horas depois, sua PM pediu ajuda justamente a um desses rivais, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL). Como fica?

11.7.13

Secretaria de Táxi-Aéreo

Político bom é aquele que tem medo de voar. É a conclusão a que chego quando vejo que o secretário estadual da Saúde do Rio, Sérgio Côrtes, não vê problema em usar o helicóptero que sua pasta mantém para a imprescindível tarefa de transportar órgãos para transplantes.

Não é preciso ser formado em medicina para saber que o surgimento de um órgão humano para transplante se dá de forma completamente aleatória – e que um helicóptero precisa estar de prontidão para cumprir sua tarefa tão logo ocorra a oportunidade.

É como se um secretário de Transportes tirasse quatro ônibus de linhas municipais a fim de  transportar sua comitiva para qualquer compromisso – oficial ou não – afetando a linha e quem utiliza o serviço.

É como se algum secretário de Educação fechasse uma escola perto de sua casa por uma semana de dias letivos, a fim de promover um evento – oficial ou não – sem chance de repor as aulas para os estudantes de lá.

Perceberam? Não é apenas a falta de decoro e o excessivo gasto de dinheiro público. É a mais bem acabada e descarada apropriação pessoal de um serviço público.

Que isso seja feito numa pasta de Saúde e que se tente achar alguma justificativa – “as viagens são para compromissos oficiais” – são sintomas de como nossos políticos estão irremediavelmente desconectados da realidade, hiperseguros da imobilidade adquirida em seus cargos e desprovidos até de humanidade.

Leia a matéria do jornal "Extra" aqui.

4.7.13

Renan da Passagem Livre


Viaja porque precisa, volta porque te ama


O presidente do Senado, Renan Calheiros, bateu uns recordes ao justificar seu uso de avião da FAB para o casamento da filha do senador Eduardo Braga, seu correligionário no PMDB, em Trancoso, Bahia.

Afirmou que foi convidado como presidente do Senado Federal, ou seja, estava em representação do Poder Legislativo, e levou sua mulher, Verônica. Estranho: se Eduardo Braga é senador pelo Amazonas e sua filha se casou num dos principais balneários da Bahia, não há a menor chance de ter sido compromisso oficial.

Não que Renan não possa estar em festas de arromba. Mas não me consta que o Legislativo precisa de alguém que coma, dance e até fique bêbado (nem sei se foi o caso, mas, por que não?) num casamento. A conclusão é óbvia: foi porque quis.

O senador foi descoberto pela “Folha”, um dia depois do presidente da Câmara, Henrique Alves (também do PMDB – percebam a coerência ideológica da sigla), ter admitido que levou comitiva de sete parentes à final da Copa das Confederações. A transparência do Legislativo, pelo visto, depende da mídia.

Ao menos, resta um consolo: quando Renan defendeu projeto de passe livre para estudantes no Senado – a fim de responder às demandas das ruas –, estava sendo o mais coerente possível com o seu pensamento a respeito de transporte público.

Aguardo ansioso o projeto da Passagem Aérea Livre.

20.6.13

Tarifa cai, e começa a Copa dos Puristas



Foi uma vitória do povo? Foi uma vitória do Movimento Passe Livre? Do vandalismo? Terá sido do PT, cujo presidente, Rui Falcão, convocou seus militantes a participar das passeatas de ontem? Se a oposição nas ruas e a situação nos gabinetes ganharam, que protesto era esse? É possível ser governo e oposição simultaneamente? O PT é apartidário?

Se a queda das tarifas virá com queda em investimentos nos transportes – como disse o governador tucano Geraldo Alckmin, apontando que o bode já está confortavelmente instalado na sala –, foi uma vitória do povo? Se o vandalismo foi crucial para atemorizar os governantes a ponto de rasgarem planilhas e empurrarem a conta mais para frente, por que os líderes do MPL tentam agora se afastar dele, identificando quem protestava e quem não?

Outra: se o MPL defende o povo, como seus líderes conseguem dizer tão descaradamente que movimentos sociais não são obrigados a pensar como e onde os governos devem achar o dinheiro que faltará com a redução da tarifa? O repasse dos custos e a falta de melhorias não prejudicam o mesmo povo que defendem?

É uma Copa de Puristas, cada um mais puro em sua teoria e mais avesso à prática – ou melhor, à realidade – e cada um invocando para si a tarefa de ser o melhor intérprete da voz desse deus chamado povo – que, sim, tem todo o direito de protestar sobre suas insatisfações. E sim, foi por isso que tanta gente de esquerda e de direita aproveitou os protestos para dizer o que estava entalado na garganta.

Só não apareceu quem entenda esses clamores e quem desonere o povo inteligentemente. 

E sim, há um cenário de imensa desilusão da democracia como regime mediador do bem-estar social. A causa é vazio ideológico dos partidos. O resultado é que os portadores de ideologia se recusam a ser vistos e agir como partidos, em nome da pureza ideológica e metodológica. Essa desilusão leva ao autoritarismo das massas autodeterminadas a saciar desejos sem mediadores, por considerarem que estes só agem em nome de seus próprios interesses e não representam ninguém.

Costuma ser o cenário perfeito para uma porrada de coisas terríveis ao longo da história - Collor? 1964? Chávez? Hitler? Escolha o seu. Governos não devem se curvar às massas, e os partidos não deveriam ser só casas de câmbio. Como desistiram de ser reservatórios representativos de ideias e gentes, o povo percebeu que há algo de fundamentalmente errado no que chamamos democracia.

Todas essas passeatas são um alerta. A persistir tanta surdez, o próximo passo é o sequestro da democracia.

13.6.13

Talvez o protesto o represente, leitor



Falar que as manifestações que perturbam a ordem em São Paulo, Rio e outras cidades são causadas apenas por uma diferença de R$ 0,20 é uma bobagem. É ater-se apenas a um dos sintomas de um perigo muito maior e corrosivo, que é a perda do controle da inflação.

Talvez estejamos assistindo ao primeiro grande protesto popular contra a desvalorização da moeda, o aumento trotante de preços e inconscientemente contrário à política econômica do governo Dilma. E é nisto que talvez tais protestos o representem, leitor, ligue você para os 20 centavos a mais na passagem ou não.

Economistas explicam assim o atual processo inflacionário: a melhor partilha da renda trouxe mais pessoas ao consumo – o que é ótimo –, mas não incentivou de maneira sólida a produção industrial, as exportações, a competitividade. A produção freou; o consumo não. Preços sobem, perde-se a noção do valor do dinheiro. Gasta-se mais, cobra-se mais ainda.

O maior problema é quando essa ciranda de preços se torna uma verdade autoevidente: o consumidor para de questionar os preços por aceitar que, no Brasil, “é assim mesmo” – seja no chope do bar da moda, seja no transporte público que até melhora, mas em ritmo lento.

Não que o Movimento Passe Livre pretenda se ver assim, como uma crítica macroeconômica à política econômica de Guido Mantega. Suas palavras giram em torno da ideia de que o transporte público seja bancado só pelos impostos, como a educação e a saúde. É filosoficamente interessante, mas uma olhada em escolas e hospitais públicos mostra que o desafio da qualidade sem ônus ao usuário, no Brasil, é utopia. E não há metrópole no mundo com um sistema de transportes inteiramente grátis.

Porém, a bandeira hoje é contra o aumento da passagem, que sim, foi guindado pela inflação – ainda que abaixo do índice do período. A rigor, não é preciso abraçar todos os ideais do MPL: basta questionar se o serviço vale o preço e o aumento – algo que deveríamos fazer em qualquer compra, em qualquer refeição, em qualquer serviço e que, por não fazermos, contribui para acelerar a roda do processo inflacionário.

Quando se reúnem 10 mil pessoas, o sentimento nunca é homogêneo: é claro que há universitários com iPhone, assim como há gente de periferia, movimentos partidários e simpatizantes independentes, e cada um leva às ruas seus motivos, intenções e interpretações. E os R$ 0,20 talvez sejam apenas o símbolo barato de uma discussão maior, à qual o Planalto deveria atentar.

Sou e serei contrário a todo tipo de vandalismo, assim como sou contra a violência policial. Mas a perturbação da "ordem" de um ciclo inflacionário calcado em inércia da política econômica federal é muito bem-vinda.

7.6.13

Sobre panteras, presas e perdas



É uma pantera. Olha-me fixamente, a pele escura manchada de pintas inda mais escuras, e seu rabo desenha ondas hipnóticas no ar. Não sei qual de nós é a vítima da hipnose, dado que nos olhamos fixamente e pouco nos mexemos mais do que o mecanismo de respiração mamífero exige. 

Não é de sempre que percebo seus passos discretos a seguir-me. Sutil, ela se esgueira pelas paredes da cidade, pelas escadarias dos edifícios, a uma distância segura. Ocorreu-lhe um deslize e a percebi. Desde então que ouço seu murmúrio, inseparável e equidistante, como trilha do caminho que eu escolho e ela segue.

Agora seus membros robustos, seu porte elegante e seu tronco sedutor e feminino apontam para mim como uma seta de intenções. Alguma predação era de se esperar em meio aos minutos em que nós nos encaramos, rostos empedrados, concedendo um ao outro a expressão que reservávamos quando mutuamente nos tínhamos em mente – e nada mais.

E dá-me agora a impressão de que a pantera parece maior e mais possante quando eu lhe dou as costas. Diante de mim, seu tamanho se reduz, seu garrote se emparelha à altura de minhas coxas, e talvez seja eu quem provoque mais medo nela, no prólogo daquele duelo cujo gongo iniciador jamais soa.

E imagino que esperamos que algo ao redor de nós desperte aquela fúria - ou aquele medo - que precipita os confrontos. E assim adiamos nosso embate pré-marcado e cansados nos despedimos. Não nos odiamos o suficiente, nem nos tememos o bastante para dar um fim nisto.

Há no entanto um minuto em que me vejo apreciando o olhar e as expressões que me tragam. Como ver minha morte por vários ângulos. Usaria primeiro as garras? Cravaria onde sua mandíbula? Viria pela frente ou optaria por atacar-me de costas, tornada superior por uma covardia que a natureza não acusa por considerar legítima dos predadores? 

A pantera fica imóvel, companheira e inseparável, enquanto a fito... por meses, anos e eras. Noto que não sou eu sua presa, admito, mas sim a atenção e o tempo que inevitavelmente lhe dou.

30.5.13

A nota fiscal e a brecha da oposição

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjbJJw3oqsMEcZMWb7TLc-ryEF35wuL-7jjWsAKk8h4g3dCIEOsk-J4EGr0XCfKFjQdpWSDIhD_Mq-2x69CM05Gc-f2_qaNdMdxVPqnHYzwfYoITmeaMcrRiPgOMa8xTNslsIeKQg/s1600/0,,11817903-EX,00.jpg

Todos os anos, o IBPT (Instituto Brasileiro do Planejamento Tributário) estabelece a data simbólica em que o brasileiro “para” de pagar impostos e passa a aproveitar realmente os seus ganhos no ano. Em 2013, o dia é neste 1º de junho – e a cada ano chega mais tarde.

Mas soa a um raciocínio simbólico, o cálculo de um índice médio, que não chegaria a ser tão doloroso: no fim, vivemos os cinco meses integralmente pagando nossos impostos em pílulas e nossas vidas não parecem tão afetadas por eles. Seria o exagero habitual, mas talvez indolor. E assim prosseguimos.

Essa aparente tranquilidade, no entanto, deve acabar no dia 10 de junho, quando entra em vigor a lei que obriga toda nota fiscal a detalhar quanto do valor pago vai para os cofres estatais.

Sim, a cada compra que você fizer, a cada serviço contratado (sejam roupas, cortes de cabelo, manicures ou aquela passada no posto de gasolina) você vai saber quanto custa o produto e quanto custa o imposto – e talvez se lembre de que raramente esses impostos retornam como compensações para o bem-estar da população.

Dos 30 países com maiores cargas tributárias do mundo, o Brasil tem o 12º percentual de impostos sobre o PIB, mas é o que oferece a pior contrapartida, segundo estudo do IBPT divulgado neste ano com dados de desenvolvimento humano da OCDE (Organização Para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e da ONU.

Assim, o que antes parecia ser uma chiadeira de empresários e de uma classe média que muitos tacham (sem trocadilho) como defensora intransigente de privilégios de classe vai ser um tema para qualquer um que compre arroz (17,24% em impostos), feijão (17,24%), carne (23,99%), pasta de dente (31,37%), caderno (35%) ou gasolina (53%). E talvez aí a oposição a Dilma e o PT encontre a melhor brecha para se aproximar desse eleitor que vota cada vez mais pelo direito de trabalhar e consumir.

Em vez de criticarem o desempenho da indústria sob o PT – pífio, mas imaterial para a maior parte do eleitorado –, os presidenciáveis poderão explicar através de cada cupom fiscal como a voracidade dos impostos mal usados aliada à inflação impedem que o brasileiro consuma mais e se endivide menos. Cada nota se tornará um lembrete cotidiano do emaranhado tributário mal dirigido que, se não foi totalmente criado por Dilma, continua a bater recordes anuais de arrecadação e desperdício sob sua égide.

O desafio maior, porém, é transformar isto efetivamente em agenda de metas, e não apenas em promessa a ser enterrada pelo caríssimo toma-lá-dá-cá das alianças, que incham a máquina com a distribuição de cargos e privilégios.

16.5.13

Por um punhado de eternidade


O título do livro já é de um poder de atração inegável, tamanha a elegância da ironia: “Uma Breve História da Eternidade” (recém-lançada pela Editora Três Estrelas, R$ 50 em média). Para contar a trajetória da expectativa mais sedutora e jamais comprovada por nós mortais, é preciso ser não só culto, como bem humorado. Carlos Eire, professor da Universidade de Yale, reúne esses dons numa obra fantástica, que contribui para enriquecer o debate sobre a compatibilidade entre a razão e a fé nos nossos dias bipolares.

Ao narrar como a eternidade foi moldada e remoldada pela civilização ocidental, Carlos Eire maneja conceitos teológicos, filosóficos, políticos e científicos de maneira acessível, dos primórdios da religião judaica até as hipóteses mais atuais da física sobre tempo e universo.

Não é um livro com respostas: é antes a cronologia de como o Homo sapiens se fez as perguntas sobre o que é eterno e como reagia às hipóteses que as melhores imaginações sustentaram, com base no que tinham à mão. Aliás, uma das melhores características de "Uma Breve História da Eternidade" é perceber que Eire divide conosco suas dúvidas e inconformismos, sem jamais se negar à ironia disso tudo. Nessa abordagem empática, ele se aproxima muito de outra historiadora de religiões, a britânica Karen Armstrong (de "Jerusalém" e "Uma História de Deus"), embora seja mais despojado que ela. Para ambos, o ser humano tem motivos para não ser reduzir a uma máquina destinada a lidar apenas com os dados comprovados do mundo e suas apreciações estéticas – no que se resume a agenda de certezas do novo ateísmo.

Eire também nos mostra como a vida social e política foi influenciada por essa ideia que, ao longo dos séculos, se expandiu e se retraiu conforme suas versões ofereciam soluções ou revelavam dilemas atrozes. Movimentos que nos fizeram sair dos enterros dentro de igrejas e das múltiplas missas pelas almas dos mortos para chegarmos à forma da democracia laica, sem que isso tenha deixado nossa mortalidade mais "aceitável".


Carlos Eire, historiador cubano-americano de religiões


Cubano que se refugiou nos EUA, Eire também aponta os dois mundos em que a eternidadade some do horizonte, descreve como a moralidade recua nesses ambientes – tanto no materialismo totalitário do Estado, quanto na angústia do consumismo egocêntrico – e observa de forma sagaz o presente do dilema esboçado por antigos gregos: conceitos que damos como inegáveis em nossas realidades ainda são construções sociais em torno de ideias aceitas.

“A eternidade é mais fácil de se conceber do que de ser aprendida”, afirma. Assim, não se nega a recorrer aos poetas, romancistas e cineastas que expressaram o inconformismo geral com nossa finitude – sempre conforme a (des)crença em voga à época. Tudo isto enriqueceu o imaginário da espécie que, como nenhuma outra, tem consciência de que vai morrer e, por isso, resiste.

Seja essa insubordinação o principal erro do nosso DNA, seja um sentimento com que conviver, todos os sonhos da eternidade mereciam uma biografia – e esta é um primor.

9.5.13

O "indispensável" Afif e seu ministério contraditório



Afif Domingos toma posse na Secretaria da Micro e Pequena Empresa
Foto: Divulgação


A posse ministerial do vice-governador de São Paulo, Guilherme Afif Domingos (PSD), é um dos mais deliciosos episódios da nossa política. Mas não só pela contradição de ser vice de um governo estadual do PSDB: essa é a parte mais fácil de entender.

Parece até que Afif é o homem mais indispensável da República, disputado por situação e oposição, mas não: o PSD não é da oposição há tempos. Tinha lá suas amarras: uma dívida de gratidão do fundador Kassab com Serra – o que o fez retardar seu pulo fora do barco até a derrota tucana para Haddad em São Paulo – e esse cargo de vice que, pela legislação, pertence a Afif porque lhe foi conquistado pelo voto. Mas o que é divertidíssimo mesmo em sua contradição é o espírito do cargo de Afif no governo Dilma. A Secretaria de Micro e Pequena Empresa é, em si, mais um entrave para o desenvolvimento das micro e pequenas empresas.

Porque cria o 39º ministério de Dilma Rousseff, o que significa mais custos, pagos por mais impostos, que são justamente o pesadelo de qualquer microempresário. Entram aí mais 66 cargos comissionados, que, somados aos encargos do ministro e do secretário executivo, custarão ao erário a bagatela anual de R$ 7,9 milhões. É pouco e ainda por cima desnecessário; e é assim que gastam-se bilhões em impostos em cada área do governo.

Se a ideia é incentivar a inovação e o empreendedorismo, o melhor que o governo poderia fazer era aplicar parte da sua estrutura elefantina já existente. Essa máquina já deveria trabalhar em soluções para a desburocratização, e não criar uma nova burocracia para agradar o micro e o pequeno aliado com cargos e boquinhas.  

O que se esperaria de um empresário que conhece os problemas de outros empresários e que diz trabalhar por essa causa é não compactuar com mais encargos da máquina administrativa. É defender o enxugamento da máquina do Estado e uma reforma tributária consistente, algo que hoje já é também responsabilidade do PT em seus dez anos de governo.

É argumentar que os R$ 158 bilhões de desonerações, previstos por Guido Mantega até 2014 a fim de incentivar a indústria, só mostram que o governo arrecada muito mais do que precisa.

Nada disso virá de Afif. No fim, o Estado de SP perde a atenção do vice que elegeu, o PT conquista mais um ponto de cara de pau ao buscar quadros na oposição por puro fisiologismo eleitoreiro, e a única empresa que seguramente será beneficiada por esse novo ministério é o PSD.

29.4.13

Não é a maioridade, é cassar a licença















A maioridade penal não é o nosso problema. A questão é que há um significativo número de adolescentes que se consideram com licença para matar porque não completaram 18 anos.

O que aconteceu na semana passada com a dentista Cynthia Moutinho, 47, queimada viva no consultório dela em São Bernardo (foto), e com o estudante Victor Hugo Deppman, 19, na zona leste de São Paulo, são crimes hediondos, cometidos por jovens que sabiam o que estavam fazendo, mas que não se sentiram suficientemente intimidados para evitar.

É muito difícil que um jovem chegue aos 15 anos sem saber que pesos e consequências existem quando se mata alguém. E o que estamos percebendo é o contrário: jovens que sabem exatamente o que podem perder topam passar algo em torno de 3 anos numa instituição de custódia, caso sejam pegos e estrategicamente incriminados. Não é por outro motivo que havia menores até no assassinato de Eliza Samúdio.

As estatísticas estão a favor deles. O Brasil elucida menos de 6% dos seus cerca de 50 mil casos de homicídio por ano. Matar alguém e escapar em mais de 90% das vezes é absolutamente possível; sendo menor, a pena é irrisória. Dentro das circunstâncias sociais que fazem o crime germinar, o menor virou o álibi mais fácil diante do Código Penal - e sim, os criminosos consultam seus advogados.

Iniciar esse debate não deveria ser visto como um sinal de princípios reacionários, nem respondido com as habituais rotulações de uma parte da esquerda sem contato com a realidade, mas uma real preocupação de que o crime hediondo seja tratado como hediondo no papel compensatório que também cabe à Justiça.

Assim, é uma jogada inteligente a proposta encaminhada ao Congresso pelo governador de São Paulo, Geraldo Alckmin - que amplia as internações de menores de 3 anos para 8 anos e aumenta penas do Código Penal para quem usa menores em bandos criminosos, também de três para 8 anos.

Em suma, usar um adolescente passaria de vantagem a péssimo negócio.

A mudança já desestimularia o engajamento de menores e não se tocaria na maioridade penal. Ainda entenderíamos roubos e furtos de menores como devem ser entendidos: fraquezas recuperáveis de caráter. Obviamente, é importante trabalhar em todas as pontas: dar educação de base e escolas profissionalizantes, criar empregos e reciclar nossas instituições de internação e presídios.

Mas a cassação dessa licença para matar na juventude tem todos os motivos para ser vista como prioritária.


25.4.13

Vida, mortos e jornalismo






Você sabia que cerca de 150 mil pessoas morrem diariamente em todo planeta?

O dado me era desconhecido até lê-lo no brilhante “Uma Breve História da Eternidade” (ed. Três Estrelas), do historiador cubano-americano Carlos Eire. O livro conta como esse conceito, explorado por religiões e filósofos, influenciou costumes e políticas ao longo da humanidade, moldando e sendo moldado por ela.

Ainda assim, fixo-me nessas 150 mil vítimas de doenças, ou de fatos que eventualmente se transformam ou não em notícia, ou simplesmente da condição de um dia ter nascido. No universo dos 7 bilhões de humanos, essa fração é irrisória: é pouco mais de 0,002% dos que estão vivos a cada dia.

Algo em torno de dois Maracanãs do tamanho do que será reinaugurado amanhã, mas ainda pequeno se você pensar no Galo da Madrugada, no Cordão do Bola Preta ou na Parada do Orgulho Gay de São Paulo, cada uma dessas multidões clamando para si números que variam na casa do milhão.

As circunstâncias que acarretam as mortes se distribuem de forma desigual de país para país: guerras, trânsito irracional, crimes, doenças, desastres, má higiene, mau saneamento ou má alimentação, acidentes estruturais. Porém, se o Anjo da Morte fosse um democrata e aplicasse sua proporção de 0,002% óbitos de forma igualitária em cada nação, teríamos 3.500 últimos suspiros de brasileiros por dia. Pelos mais diversos motivos, doenças e crimes.

No Estado de São Paulo, seriam em média 838 mortos – assim como na Argentina, que tem população semelhante em números. No Rio, 324 falecimentos, bem como no Chile. Em Pernambuco,  178 enterros, nove a mais que na Áustria. No Distrito Federal, assim como na Jamaica, seriam conduzidos 53 funerais.

“De morte natural nunca ninguém morreu”, escreveu o português Jorge de Sena (1919-1978), resumindo nosso eterno inconformismo ante o desfecho irrevogável da vida – algo que as estatísticas leem com frieza atroz. Outro poeta, o inglês John Donne (1572-1631), foi mais além na solidariedade: “A morte de cada homem diminui-me, porque sou parte da humanidade”, e a cada vez que os sinos dobravam em luto, via seu próprio fim iminente lamentado.

Para um jornal, cabe a dura tarefa de escolher quais mortes terão mais atenção, por suas circunstâncias, consequências, proximidade ou pela fama da vida que se encerra. Fomos e seremos sempre coveiros de um cemitério que não tem sepulturas suficientes para todos os que a ele chegam.







*A Morte, O Espaço, A Eternidade
de Jorge de Sena
De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos,
não foi só para a morte que dos tempos
chega até nós esse murmúrio cavo,
inconsolado, uivante, estertorado,
desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrumanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inominável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fora
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo esta ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais.
A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza. Somos
esse negar da espécie, esse negar do que
nos liga ainda ao Sol, à terra, às águas.
Para emergir nascemos. Contra tudo e além
de quanto seja o ser-se sempre o mesmo
que nasce e morre, nasce e morre, acaba
como uma espécie extinta de outras eras.
Para emergirmos livres foi que a morte
nos deu um medo que é nosso destino.
Tudo se fez para escapar-lhe, tudo
se imaginou para iludi-la, tudo
até coragem, desapego, amor,
tudo para que a morte fosse natural.
Não é. Como, se o fôra, há tantos milhões de anos
a conhecemos, a sofremos, a vivemos,
e mesmo assassinando a não queremos?
Como nunca ninguém a recebeu
senão cansado de viver? Como a ninguém
sequer é concebível para quem lhe seja
um ente amado, um ser diverso, um corpo
que mais amamos que a nós próprios? Como
será que os animais, junto de nós,
a mostram na amargura de um olhar
que lânguido esmorece rebelado?
E desde sempre se morreu. Que prova?
Morrem os astros, porque acabam. Morre
tudo o que acaba, diz-se. Mas que prova?
Só prova que se morre de universo pouco,
do pouco de universo conquistado.
Não há limites para a Vida. Não
aquela que de um salto se formou
lá onde um dia alguns cristais comeram;
nem bem aquela que, animal ou planta,
foi sendo pelo mundo este morrer constante
de vidas que outras vidas alimentam
para que novas vidas surjam que
como primárias células se absorvam.
A Vida Humana, sim, a respirada,
suada, segregada, circulada,
a que é excremento e sangue, a que é semente
e é gozo e é dor e pele que palpita
ligeiramente fria sob ardentes dedos.
Não há limites para ela. É uma injustiça
que sempre se morresse, quando agora
de tanto que matava se não morre.
É o pouco de universo a que se agarram,
para morrer, os que possuem tudo.
O pouco que não basta e que nos mata,
quando como ele a Vida não se amplia,
e é como a pele do ónagro, que se encolhe,
retráctil e submissa, conformada.
É uma injustiça a morte. É cobardia
que alguém a aceite resignadamente.
O estado natural é complacência eterna,
é uma traição ao medo por que somos,
áquilo que nos cabe: ser o espírito
sempre mais vasto do Universo infindo.
O Sol, a Via Láctea, as nebulosas,
teremos e veremos até que
a Vida seja de imortais que somos
no instante em que da morte nos soltamos.
A Morte é deste mundo em que o pecado,
a queda, a falta originária, o mal
é aceitar seja o que for, rendidos.
E Deus não quer que nós, nenhum de nós,
nenhum aceite nada. Ele espera,
como um juiz na meta da corrida
torcendo as mãos de desespero e angústia,
porque nada pode fazer nada e vê
que os corredores desistem, se acomodam,
ou vão tombar exaustos no caminho.
De nós se acresce ele mesmo que será
o espírito que formos, o saber e a força.
Não é nos braços dele que repousamos,
mas ele se encontrará nos nossos braços
quando chegarmos mais além do que ele.
Não nos aguarda – a mim, a ti, a quem amaste,
a quem te amou, a quem te deu o ser –
não nos aguarda, não. Por cada morte
a que nos entregamos ele se vê roubado,
roído pelos ratos do demónio,
o homem natural que aceita a morte,
a natureza que de morte é feita.
Quando a hora chegar em que já tudo
na terra foi humano — carne e sangue —,
não haverá quem sopre nas trombetas
clamando o globo a um corpo só, informe,
um só desejo, um só amor, um sexo.
Fechados sobre a terra, ela nos sendo
e sendo ela nós todos, a ressurreição
é morte desse Deus que nos espera
para espírito seu e carne do Universo.
Para emergir nascemos. O pavor nos traça
este destino claramente visto:
podem os mundos acabar, que a Vida,
voando nos espaços, outros mundos,
há-de encontrar em que se continui.
E, quando o infinito não mais fosse,
e o encontro houvesse de um limite dele,
a Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,
para que em Espaço caiba a Eternidade.