9.10.13

A inocência útil biografada




O debate sobre as biografias tem a ver com a ideia da democracia que se deseja. A pergunta mais contundente da carta aberta de Benjamin Moser a Caetano Veloso, na Ilustrada desta quarta, soa a clichê surrado, mas há em certos clichês uma honestidade indiscutível: que país Caetano quer deixar para os seus filhos, considerada sua política de escrita de biografias?

Lido ao lado do americano Jon Lee Anderson n'O Globo, o também americano e biógrafo de Clarice Lispector fica ainda mais completo. Autor de "Che", Anderson afirma que "a sociedade não pode controlar [preventivamente] essa situação [entre a ética do biógrafo e a privacidade do biografado], especialmente quando ela tem relação com figuras políticas".

É natural que americanos ensinem essa posição: a Constituição deles é histórica defensora do direito à liberdade de expressão como coluna-mestra da democracia. Sem liberdade de expressão, não existe liberdade de religião, nem existe liberdade de informação; a liberdade de pensamento, mesmo que exista textualmente, já nasce com perspectivas diminuídas de desenvolvimento.

Por isso, não cabe aqui fazer qualquer paralelo com a invasão de privacidades perpetrada recentemente pelo governo dos Estados Unidos, que decidiu aproveitar brecha para ser inconstitucional, que está à margem de sua própria lei e que entrará para a história jogando lama em si mesmo. A belíssima agenda de liberdades que é a sua Constituição, pelo contrário, não se mancha.

(Aliás, a restrição à liberdade de expressão é prima-irmã do desacato à autoridade, esse subterfúgio que justifica muitas das prisões às quais Caetano aparentemente se opõe)

Voltando ao legado que a cúpula da MPB pretende, eis o principal risco que a democracia vive quando artistas abraçam o projeto obscurantista do Procure Saber: que as figuras políticas se apropriem das prerrogativas estabelecidas pelos artistas escaldados pelo jornalismo de celebridades; a partir disso, esses políticos conseguiriam restringir ao máximo os dados de interesse público em suas biografias.

Na verdade, já conseguem, manejando abuso de poder econômico e advogados caros perante juízes lenientes com base em leis de cunho ditatorial ou interpretações inconstitucionais. Os exemplos são variados e vergonhosamente recentes.

Por isso é imperdoável a inocência útil – na melhor das hipóteses – de tantos artistas censurados durante a ditadura.

O artigo 5º, inciso X da Constituição Federal, citado por Francisco Bosco em "O Globo", afirma claramente que são invioláveis a intimidade, a privacidade, a honra e a imagem das pessoas. Bosco, porém, não redige o restante do artigo: "assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

Ou seja: primeiro é preciso que alguém julgue de forma imparcial se houve a suposta violação, até para que não haja prejuízo ao artigo 220 da mesma Constituição, que garante a impossibilidade de censura prévia a qualquer manifestação de expressão. Não dá para expulsar o zagueiro antes que ele cometa a falta, por mais preciosas que sejam as pernas do atacante.

É esse mesmo Artigo 220 que torna anacrônicos os preceitos dos artigos 20 e 21 do Código Civil, que se referem à necessidade de autorização da pessoa pública a respeito de informação sua de interesse público. É desnecessário dizer que a censura seria ainda inconstitucional, mas, como o tempo é de analfabetos funcionais, então faço questão de sublinhar: a censura decorrente desses artigos é inconstitucional, como seria qualquer outra.

O texto do artigo 220 é tão claro, tão nítido e tão nacional em sua ausência de conjunções adversativas que não há por que pensar em quaisquer poréns que favoreçam censura, ou mesmo em necessidades de empréstimos de legislação estrangeira. É um parágrafo que deveria ser lido e relido por todo artista brasileiro, ao som do "Cálice" nas vozes de Chico Buarque e Milton Nascimento, outros dos que hoje emprestam seus nomes para os obscurantistas:

 A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.


Lidos esses trechos, fica claro que este debate é um Chico dando novos significados a "A Voz do Dono e o Dono da Voz", é um Caetano não entendendo nada do Caetano de "É Proibido Proibir", é a coronelização da Música Popular Burocrata, que passou procuração às noções de cultura de Paula Lavigne a fim de um troco a mais, sem se importar com tudo que ainda precisamos procurar saber.

Deixo ainda a Francisco Bosco, pessoa da minha mais alta consideração, alguns questionamentos.

Você realmente acredita em si quando diz que a vida pública é totalmente dissociável da vida privada? Crê realmente ser possível, numa biografia de artista ou político, podar os fatos íntimos que formam a personalidade do autor, de suas obras e de seus feitos?

Eu não acredito numa biografia de Mahler que não cite a disfunção erétil dele e os adultérios de Alma. Não acredito numa biografia de Hannah Arendt sem mencionar sua relação com Heidegger. Não acredito numa biografia de Gilberto Gil que não esboce os eventos que levaram à composição de "Drão". Não acredito numa biografia de João Bosco que não conte a cisão pública e amplamente noticiada da parceria com Aldir Blanc, que inviabilizou temporariamente uma produção que o Brasil aprendeu a apreciar como um dos triunfos da MPB. São fatos tão inequivocamente refletidos nas produções artísticas dos supracitados que chega a ser dever contá-los.

Nada desses eventos precisa de detalhes sórdidos, descrições naturalistas ou falas inventadas – não é desse jornalismo de celebridades que precisamos nas biografias que ainda não foram escritas. O que é necessário é acreditar na hipótese não rara do biógrafo ético, como Ruy Castro, Mario Magalhães, Lira Neto, Benjamin Moser e tantos outros. Acreditar nisso tanto para a política, que nos permite analisar nossa história, quanto para as artes, que nos fazem senti-la. Acreditar no bem em potencial que isso lega à cultura brasileira, hoje em franco processo de esvaziamento de significados quanto de infantilização (compare as letras que cantamos nos sucessos de hoje). Há uma história de ideais a serem resgatados, nem que seja para lamentar o tempo perdido. No mínimo, o direito a essa memória tem que ser legado às gerações que nascem num momento artístico cada vez mais pródigo em sacolejos e avesso a maiores significados.

Em tempo: ninguém impede os artistas de escreverem suas autobiografias ou de patrocinarem relatos autorizados visando lucro. Que eles ditem suas memórias com carinho, peçam indenização quando acharem que devem e abram mão da coroa absolutista que, depois de tantos anos prestados à democracia, eles hoje creem merecer.

Em tempo 2: eu gostaria de ver isto discutido entre as bandeiras alçadas na Feira de Frankfurt, se os escritores, que fizeram discursos políticos elogiáveis, ainda tiverem espaço para debater cultura brasileira.

3.10.13

Existirá vida após a des-PM no Rio?

Ser carioca é ter a noção clara de que o noticiário de crimes contra a vida recebe enorme contribuição da nossa bicentenária Polícia Militar. Nos casos de repercussão, é inegável um monopólio policial na autoria ou na suspeita.

Relembremos: Vigário Geral, Candelária, Geisa e Sandro do ônibus 174, o menino João Roberto, a juíza Patrícia Acioli, o menino Juan e os inúmeros milicianos que saem de corporações militares. 

Reforça essa certeza o desfecho do inquérito policial do pedreiro Amarildo – no mesmo dia em que policiais em ação durante os protestos dos professores na Cinelândia algemaram um rapaz via flagrante falso de três morteiros, que desistiram de registrar, talvez por instinto de sobrevivência. O flagrante é anunciado – "Está com três morteiros", diz o policial – mas não chega aos autos. Não importa: o motivo das humilhantes algemas e do encaminhamento à delegacia foi o tal flagrante.


Amarildo: vítima de tortura, segundo o inquérito policial


Se Amarildo foi torturado por PMs com choques elétricos e sufocamento e morto em dependência da UPP da Rocinha, como concluiu o inquérito, provaremos ao mundo que, a menos de um ano da final de Copa, não somos um bom lugar para viver, não nos pacificamos ao pé da letra, não humanizamos o tratamento dado às populações carentes atendidas pelas UPPs.

É ainda mais grave porque as UPPs foram anunciadas pelo Governo do Estado como planejadas para receber policiais recém-formados, “sem vícios de conduta” – e o treinamento deles, pelo visto, continua igual ao dos veteranos que policiam manifestações: apagar incêndios com gasolina.

No vídeo em que os policiais armam o flagrante dos morteiros, temos pelo menos duas câmeras filmando tudo. Impressiona a indiscrição dos policiais, a cara de pau, o destemor diante de qualquer risco de punição que lhes possa sobrevir.

Desmilitarizar a polícia virou um mantra, a verdade autoevidente que corrigiria todo o sistema. Não é. Se um dia ocorrer, será uma experiência. Desmilitarizá-la será aceitar que decida entrar em greve, por exemplo, um luxo para um país com índices de violência superiores aos de zonas conflagradas. E tudo isso com as características que as greves têm adquirido no país, como a de servir de trampolim midiático para partidos e políticos muito pouco preocupados com o bem-estar popular.

Por outro lado, será a aposta de que, num regime civil de trabalho, a polícia fluminense não aja como se estivesse em guerra no Afeganistão. Mas eu escrevo essas coisas e me lembro da chuva de tiros disparada neste ano por um helicóptero da Polícia Civil na favela do Rola, arriscando vidas e baleando paredes em toda a vizinhança. Repito: Polícia Civil. A missão? A execução sumária de um traficante, uma operação de guerra que mancha qualquer estado que se diga democrático.

O que quero dizer é que civilizar a PM não significa transformá-la imediatamente nas polícias de outras cidades do mundo, sacadas como exemplo pelos sociólogos e antropológos mais bem-intencionados. Ainda vamos ter uma cultura policial carrasca, com pouco pudor de matar, situações de alta tensão incomuns no Ocidente civilizado e nossa atávica corrupção. Talvez valha tentar, mas talvez falhe, no cenário descrito.

Mas é muito difícil que surja um desastre pior que o do presente.