29.3.12

E como eu fico, sem Chico nem Millôr?

Polímata é uma palavra difícil de se ouvir no dia a dia: significa o indivíduo que estuda ou domina várias ciências. Como o Brasil perdeu dois exemplos dessa espécie rara em menos de uma semana, é hora de buscar os melhores termos que o “Houaiss” e o “Aurélio” às vezes escondem do nosso cotidiano.

O adeus a Chico Anysio, aos 80 anos, foi ensaiado com um lento baixar do pano. O habitat natural do cearense de Maranguape era a televisão, de onde perdeu espaço desde 2001 por motivos alheios à sua vontade. Em retrospectiva, o humorista, ator, diretor, roteirista, compositor, comentarista de futebol, pintor e criador de 209 personagens parece-me cada vez maior, talvez o ator dos atores nacionais. Se nunca interpretou um Shakespeare na vida, é de se dizer que o azar é todo do poeta inglês. Poderia ter sido um digno rei Lear, ou uma alegríssima comadre de Windsor, com trejeitos combinados de Salomé e Neide Taubaté.

Ao menos o Brasil deu ao velho William a sorte de ser traduzido por Millôr Fernandes, 87, que também foi poeta, dramaturgo, aforista, jornalista, ilustrador, inventor do frescobol e humorista fundador do lendário “O Pasquim”.

Dois intelectuais à brasileira. Duas almas enciclopédicas gestadas no século 20, que entenderam que seus papéis seriam mais bem desempenhados se espalhassem inteligência através do humor, em vez de preferir o caminho digno – porém mais restrito – do texto sério.

Chico alertou-nos em relação aos pastores centavistas (Tim Tones), aos políticos com horror a pobres (Justo Veríssimo), ao ridículo de ter que disfarçar uma homossexualidade à força (Haroldo) e, sobretudo, à necessidade de rir. “O humor deveria ser obrigatório”, afirmou certa vez em entrevista. Sátira e malícia de massas, para que o Brasil entendesse a si mesmo.

Já Millôr ensinou que a sabedoria não precisa ser palavrosa ou empolada – bem diferente do que políticos e juízes tentaram nos fazer crer. Criou teses arrebatadoras em frases curtíssimas, que revelavam verdades brilhantes e críticas astutas. É o brasileiro mais citável de todos os tempos, pau a pau com Nelson Rodrigues. Um exemplo? “Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos bem.”

Duas obras múltiplas, imensas, de quando o humor podia ser interpretado às gargalhadas, sem custas de protestos, debates e processos.

22.3.12

Um pacto entre o acaso e o destino

Nesta última semana, o assunto que mais me chamou a atenção foi a morte de um papa. Shenouda 3º era o líder da Igreja Ortodoxa Copta desde 1971; morreu no sábado, aos 88 anos. “Copta” é a palavra grega para “egípcio”, nacionalidade de mais da metade dos seguidores do pontífice, estimados entre 10 milhões e 20 milhões em todo o globo.

Mais impressionante ainda me foi como eles decidem quem o sucederá. Diferentemente do conclave católico – brilhantemente retratado pelo italiano Nanni Moretti no filme em cartaz “Habemus Papam” –, que dura poucos dias e aponta um vencedor após debates e votações dos cardeais, a eleição copta pode se alongarr meses. Os líderes da religião apontam três bispos, cujos nomes são escritos em papéis que serão reunidos numa urna.

O toque mágico da decisão é um sorteio executado por um menino que, de olhos vendados e “a mão guiada por Deus” (segundo a crença ortodoxa copta), escolhe o papel com o nome do vencedor. Assim Shenouda 3º foi alçado a um pontificado de 40 anos e 4 meses.

Acaso ou destino, é belíssimo que, mesmo após toda a política que indica a lista tríplice, a Igreja Copta aceite que os anseios e ambições de bispos racionais devam dar espaço ao imprevisível. Suponho que, neste sorteio sem manipulações, a “escolha de Deus” se legitime para eles, depois que os homens tenham feito as suas.

Só que os coptas têm todos os motivos para não confiar demais na sorte. Desde que a Primavera Árabe irrompeu em 2011, integrar a minoria cristã de um país muçulmano tornou-se ainda mais difícil. A ascensão de um partido islâmico no Parlamento egípicio piora ainda mais as coisas.

Ser um papa copta, como Shenouda foi, é agir diplomaticamente, guiando a religião mas sobretudo protegendo a faixa marginalizada do povo.  Atentados e assassinatos de cristãos egípcios são denunciados mês a mês pelas agências de notícias que cobrem o país.

Mas a tradição manda, e Shenouda 3º será substituído em sorteio. Assim os coptas ensinam que, por piores que sejam os tempos, a ilusão de tentar controlar tudo é um mal ainda maior que deve ser evitado. Haverá otimismo quando a inocência da criança mediar o ‘pacto’ entre o planejado e o aleatório – isso que todos somos, dia a dia, quase sem notar.

8.3.12

Às mulheres, uma felicidade sem dívidas com o passado

O Dia Internacional da Mulher costuma ser um debate. Enquanto umas se envaidecem por serem elogiadas, parabenizadas ou presenteadas, muitas não entendem qual é o ponto de haver um dia que festeje alguém pelo fato de, na concepção, ter recebido um cromossomo X a mais. De fato, por que ser parabenizada por algo que não se pôde escolher? Não faltam mulheres que se queixam desses cumprimentos, por verem um paternalismo embutido e da condescendência com segundas intenções.

De fato, é mais um convite à memória do que à festa. Memória das épocas em que a condição da mulher era ditada por uma série de convenções culturais, muitas com base em ortodoxia religiosa, outras em machismo. Quem vê hoje a mulher chefiar lares, trabalhar em cargos executivos e presidir países de dimensões continentais pode, muitas vezes, se esquecer de que são escolhas e conquistas relativamente recentes. Há algumas décadas, nem havia escolhas.

Mas todas as mudanças acabam tendo lados ruins, e hoje o que mais me chama a atenção é que, ao reverterem a  tirania dos homens, as mulheres caíram numa tirania das próprias mulheres, em altos debates sobre a condição feminina, o que lhe seria obrigatório ou não. Ditames criados pelas próprias mulheres, por aversão a velhos conceitos que não necessariamente são condenáveis ou prejudiciais.

Noto que há mulheres que nitidamente adiam os sonhos que têm sobre casamento e da gravidez como se devessem compensar as frustrações profissionais das antepassadas. Têm medo de casar cedo e “não aproveitar” a juventude com mais parceiros e menos dependentes, além de “empacarem” suas carreiras. É curioso que muitas não reparem que “casar cedo”, numa sociedade como a nossa, também pode significar voltar a ser solteira cedo.

Uma mulher que se casa e tem filho aos 25 anos pode, segundo a média aferida pelo IBGE, se divorciar 10 anos depois. Estará com 35 anos (para nossos parâmetros, ainda é uma mulher extremamente jovem e interessante), com mais dinheiro para se divertir e poderia até curtir “uma segunda adolescência”. Se o casamento durar mais, por que não?, tanto melhor.

Se me permitem, desejo que vocês possam escolher cada vez mais por suas individualidades, sem débitos com ideologias, e se tornem felizes de acordo com o que queiram sonhar.

1.3.12

Aos evangélicos eleitores em 2012

A nossa política é apartidária. Significa dizer que os partidos não interessam como blocos ideológicos, comprometidos com orientações políticias coerentes. Eles negociam entre si as melhores oportunidades de se sustentar dentro dos projetos de poder em voga.

Se isso não tinha ficado claro com o PT de Fernando Haddad e o PSDB de José Serra disputando a mão do PSD de Kassab  – que já mostra toda uma vocação de “legenda para simbioses”, já consagrada pelo PMDB –, eis que Dilma nos apresenta o senador Marcelo Crivella, do PRB, como novo ministro da Pesca e Aquicultura. A intenção não é melhorar o setor pesqueiro, mas atrair o voto evangélico, principalmente para a eleição em São Paulo.

Segundo o censo do IBGE, 20% da população brasileira é evangélica. Talvez seja o bloco mais uníssono nas urnas: dependendo de como se manifeste em relação a temas delicados (por exemplo, aborto e direitos dos homossexuais), o candidato é ou não aprovado em massa.

É de se perguntar se o evangélico não repara que é usado para o fisiologismo de seus “representantes”, como o licenciado bispo Crivella. Ou se não percebe que certas questões são levantadas só porque são pontos-chaves da fé, ainda que não tenham relação com a eleição em si.

Dou exemplo: nesta semana, o ex-ministro Fernando Haddad, pré-candidato do PT à prefeitura de São Paulo, foi questionado sobre sua posição sobre o aborto e se disse contra. A verdade é que pouco interessa a opinião do candidato sobre esse tópico, porque um prefeito não tem como legalizar o aborto em sua própria cidade. Isso só se faz nacionalmente. Neste ano, interessam ideias sobre outros temas:

Se o transporte público da casa ao trabalho é confortável, rápido e barato. Se seu bairro é iluminado e limpo. Se a varrição e a coleta de lixo funcionam bem. Se o trânsito é pensado de forma a ter menos engarrafamentos. Se há planos para evitar enchentes, com limpeza de esgotos e rios. Se o mobiliário urbano de praças e parques está bem cuidado. Se o ensino municipal avançou. Se os hospitais municipais melhoraram; numa emergência, até conveniados dependem do atendimento deles.

Olhe em volta, leitor, e não caia de boa fé em armadilhas. Em 2012, você vota por onde anda.