20.6.13

Tarifa cai, e começa a Copa dos Puristas



Foi uma vitória do povo? Foi uma vitória do Movimento Passe Livre? Do vandalismo? Terá sido do PT, cujo presidente, Rui Falcão, convocou seus militantes a participar das passeatas de ontem? Se a oposição nas ruas e a situação nos gabinetes ganharam, que protesto era esse? É possível ser governo e oposição simultaneamente? O PT é apartidário?

Se a queda das tarifas virá com queda em investimentos nos transportes – como disse o governador tucano Geraldo Alckmin, apontando que o bode já está confortavelmente instalado na sala –, foi uma vitória do povo? Se o vandalismo foi crucial para atemorizar os governantes a ponto de rasgarem planilhas e empurrarem a conta mais para frente, por que os líderes do MPL tentam agora se afastar dele, identificando quem protestava e quem não?

Outra: se o MPL defende o povo, como seus líderes conseguem dizer tão descaradamente que movimentos sociais não são obrigados a pensar como e onde os governos devem achar o dinheiro que faltará com a redução da tarifa? O repasse dos custos e a falta de melhorias não prejudicam o mesmo povo que defendem?

É uma Copa de Puristas, cada um mais puro em sua teoria e mais avesso à prática – ou melhor, à realidade – e cada um invocando para si a tarefa de ser o melhor intérprete da voz desse deus chamado povo – que, sim, tem todo o direito de protestar sobre suas insatisfações. E sim, foi por isso que tanta gente de esquerda e de direita aproveitou os protestos para dizer o que estava entalado na garganta.

Só não apareceu quem entenda esses clamores e quem desonere o povo inteligentemente. 

E sim, há um cenário de imensa desilusão da democracia como regime mediador do bem-estar social. A causa é vazio ideológico dos partidos. O resultado é que os portadores de ideologia se recusam a ser vistos e agir como partidos, em nome da pureza ideológica e metodológica. Essa desilusão leva ao autoritarismo das massas autodeterminadas a saciar desejos sem mediadores, por considerarem que estes só agem em nome de seus próprios interesses e não representam ninguém.

Costuma ser o cenário perfeito para uma porrada de coisas terríveis ao longo da história - Collor? 1964? Chávez? Hitler? Escolha o seu. Governos não devem se curvar às massas, e os partidos não deveriam ser só casas de câmbio. Como desistiram de ser reservatórios representativos de ideias e gentes, o povo percebeu que há algo de fundamentalmente errado no que chamamos democracia.

Todas essas passeatas são um alerta. A persistir tanta surdez, o próximo passo é o sequestro da democracia.

13.6.13

Talvez o protesto o represente, leitor



Falar que as manifestações que perturbam a ordem em São Paulo, Rio e outras cidades são causadas apenas por uma diferença de R$ 0,20 é uma bobagem. É ater-se apenas a um dos sintomas de um perigo muito maior e corrosivo, que é a perda do controle da inflação.

Talvez estejamos assistindo ao primeiro grande protesto popular contra a desvalorização da moeda, o aumento trotante de preços e inconscientemente contrário à política econômica do governo Dilma. E é nisto que talvez tais protestos o representem, leitor, ligue você para os 20 centavos a mais na passagem ou não.

Economistas explicam assim o atual processo inflacionário: a melhor partilha da renda trouxe mais pessoas ao consumo – o que é ótimo –, mas não incentivou de maneira sólida a produção industrial, as exportações, a competitividade. A produção freou; o consumo não. Preços sobem, perde-se a noção do valor do dinheiro. Gasta-se mais, cobra-se mais ainda.

O maior problema é quando essa ciranda de preços se torna uma verdade autoevidente: o consumidor para de questionar os preços por aceitar que, no Brasil, “é assim mesmo” – seja no chope do bar da moda, seja no transporte público que até melhora, mas em ritmo lento.

Não que o Movimento Passe Livre pretenda se ver assim, como uma crítica macroeconômica à política econômica de Guido Mantega. Suas palavras giram em torno da ideia de que o transporte público seja bancado só pelos impostos, como a educação e a saúde. É filosoficamente interessante, mas uma olhada em escolas e hospitais públicos mostra que o desafio da qualidade sem ônus ao usuário, no Brasil, é utopia. E não há metrópole no mundo com um sistema de transportes inteiramente grátis.

Porém, a bandeira hoje é contra o aumento da passagem, que sim, foi guindado pela inflação – ainda que abaixo do índice do período. A rigor, não é preciso abraçar todos os ideais do MPL: basta questionar se o serviço vale o preço e o aumento – algo que deveríamos fazer em qualquer compra, em qualquer refeição, em qualquer serviço e que, por não fazermos, contribui para acelerar a roda do processo inflacionário.

Quando se reúnem 10 mil pessoas, o sentimento nunca é homogêneo: é claro que há universitários com iPhone, assim como há gente de periferia, movimentos partidários e simpatizantes independentes, e cada um leva às ruas seus motivos, intenções e interpretações. E os R$ 0,20 talvez sejam apenas o símbolo barato de uma discussão maior, à qual o Planalto deveria atentar.

Sou e serei contrário a todo tipo de vandalismo, assim como sou contra a violência policial. Mas a perturbação da "ordem" de um ciclo inflacionário calcado em inércia da política econômica federal é muito bem-vinda.

7.6.13

Sobre panteras, presas e perdas



É uma pantera. Olha-me fixamente, a pele escura manchada de pintas inda mais escuras, e seu rabo desenha ondas hipnóticas no ar. Não sei qual de nós é a vítima da hipnose, dado que nos olhamos fixamente e pouco nos mexemos mais do que o mecanismo de respiração mamífero exige. 

Não é de sempre que percebo seus passos discretos a seguir-me. Sutil, ela se esgueira pelas paredes da cidade, pelas escadarias dos edifícios, a uma distância segura. Ocorreu-lhe um deslize e a percebi. Desde então que ouço seu murmúrio, inseparável e equidistante, como trilha do caminho que eu escolho e ela segue.

Agora seus membros robustos, seu porte elegante e seu tronco sedutor e feminino apontam para mim como uma seta de intenções. Alguma predação era de se esperar em meio aos minutos em que nós nos encaramos, rostos empedrados, concedendo um ao outro a expressão que reservávamos quando mutuamente nos tínhamos em mente – e nada mais.

E dá-me agora a impressão de que a pantera parece maior e mais possante quando eu lhe dou as costas. Diante de mim, seu tamanho se reduz, seu garrote se emparelha à altura de minhas coxas, e talvez seja eu quem provoque mais medo nela, no prólogo daquele duelo cujo gongo iniciador jamais soa.

E imagino que esperamos que algo ao redor de nós desperte aquela fúria - ou aquele medo - que precipita os confrontos. E assim adiamos nosso embate pré-marcado e cansados nos despedimos. Não nos odiamos o suficiente, nem nos tememos o bastante para dar um fim nisto.

Há no entanto um minuto em que me vejo apreciando o olhar e as expressões que me tragam. Como ver minha morte por vários ângulos. Usaria primeiro as garras? Cravaria onde sua mandíbula? Viria pela frente ou optaria por atacar-me de costas, tornada superior por uma covardia que a natureza não acusa por considerar legítima dos predadores? 

A pantera fica imóvel, companheira e inseparável, enquanto a fito... por meses, anos e eras. Noto que não sou eu sua presa, admito, mas sim a atenção e o tempo que inevitavelmente lhe dou.