26.1.12

RIO, CAPITAL MUNDIAL DO TERRORISMO ACIDENTAL

A culpa ainda não sabemos de quem é. Mas, quando um edifício de 20 andares desaba e leva outros dois consigo, além de um número ainda indeterminados de vítimas, é de se perguntar o que faz do Rio uma cidade tão repleta de atentados espontâneos.

Sim, amigo, é absurdo que um edifício desabe, como se tivesse sido alvo de um avião pilotado por terroristas. Assim como no ano passado era absurdo que tampas de bueiros voassem como minas terrestres, ou que um restaurante explodisse como se tivesse sido visitado por um homem-bomba. Tudo isso acontece no Rio com frequência extremamente incômoda – percebam que eu só observei os últimos dois anos.

Como nenhum grupo fundamentalista jamais clamou para si a autoria desses eventos, todos dignos de uma Al-Qaeda, podemos realmente decretar que o Rio é a capital mundial do terrorismo acidental.

Na Cidade Maravilhosa, os acidentes causados por imperícia, imprudência e negligência são do tipo que grupos paramilitares levam anos para planejar minuciosamente.

Repito: ainda não sabemos o que aconteceu no edifício Liberdade. Mas já soa trágico que todas as hipóteses plausíveis apontem ou para o amadorismo canhestro com um toque de corrupção – já que envolvem a retirada de uma viga de sustentação ou excesso de entulho, em uma obra que não tinha licença para ser executada – ou para má conservação com possíveis infiltrações na laje, ou o uso clandestino de gás (esta última tese parece ser a mais afastada).

É um pouco frustrante que em nenhum momento possamos cogitar algo como terrorismo. Faria mais sentido se fossem criminosos o desabamento na Treze de Maio, a detonação de bueiros das empresas de luz e gás e mesmo a explosão do restaurante Filé Carioca na Praça Tiradentes, em outubro passado. E ainda me lembram, sim, do descarrilamento do bondinho de Santa Teresa.

Na impossibilidade de culpar algum imitador do falecido Osama bin Laden, vamos ter que lidar com mais um sintoma grosseiro de irresponsabilidade e ilegalidade, tumores sociais a que a população carioca está tão perigosamente habituada, enterrar os mortos e consolar as viúvas e os órfãos feitos pelo absurdo.

E dizer-lhes, entre as condolências, que infelizmente essas coisas “acontecem”. Que foi sem querer. Ou que foi Deus que quis assim.

19.1.12

A CRACOLÂNDIA QUE ENFIM INTERESSA

Antigamente, uma Cracolândia não interessava no jogo político. Como se tratava só de um reduto de pessoas que dificilmente portam títulos de eleitor – e condições de usá-los –, tudo se restringia a incursões pontuais de autoridades, ora de Saúde, ora de Segurança. A população que podia evitava seus domínios; a que mora ou trabalha nos seus arredores, convive com o medo, a miséria e a violência. Se viesse uma denúncia da oposição (qualquer que fosse a que estivesse no turno), ninguém se comovia. Era terra de ninguém, inexistente no mapa da maioria dos paulistanos.

Mas recentemente as capitais da sexta economia mundial descobriram que seus centros degradados poderiam ser úteis para atrair parceiros ideais: empreiteiras e imobiliárias capazes de contribuir de forma decisiva para as campanhas, que andavam meio chateadas com a estagnação das áreas nobres para a construção e notaram a mina de terrenos bem localizados, que deveriam pertencer a alguém. No Rio, o Porto Maravilha (não uma cracolândia deflagrada, mas tão degradada quanto); em São Paulo, a Nova Luz; todos projetos concedidos à administração da iniciativa privada, que pode explorá-la e transformá-la sem muitos debates e sem que o urbanismo seja a meta principal no processo de revitalização.

Os governos ajudam os consórcios como podem. A prefeitura de São Paulo já toca o processo de demolição de imóveis desinteressantes nos arredores da Nova Luz e, em parceria com o Estado, espana o miserê que não vota. Constitucionalmente, não se pode obrigar viciados a se tratarem, mas é possível debandá-los – suficiente para a cosmética do jogo eleitoral.

Por sua vez, a oposição churrasqueira faz questão de esquecer que já esteve na prefeitura com Marta Suplicy (PT), num mandato que nem de perto estancou a degradação no local. Como agora, não se estabeleceu nenhum programa de longa duração – algo fundamental no combate a um vício devastador com toques de epidemia, como o crack – quando prefeita e presidente eram igualmente petistas.

Agora toda a cidade se dedica a debater o tema, mas com prazo certo até as próximas eleições. Avanços? Sem dúvida. A Cracolândia finalmente interessa; os humanos, ainda não.

18.1.12

D’ALÉM-MÁRVIO*
PROSPERIDADE BRASUCA EM TESTE



Enquanto o Rio esquenta os tamborins, ávidos por mais um Carnaval, São Paulo debate a truculência de uma ação da polícia militar em áreas do centro infestadas há uma década por viciados em crack. Em breve, porém, saberemos o quão hospitaleira a atual sexta economia do mundo pretende ser com estrangeiros.


De um lado, a necessidade de tocar obras estruturais (muitas visando à Copa-2014 e à Olimpíada-2016) confronta o déficit de profissionais locais adequados. Do outro, um país que virou sonho de porto seguro no mundo, o que atrai - legal ou ilegalmente – europeus, vizinhos e, mais recentemente, oriundos do calamitoso Haiti.

No ano passado, foram concedidos 51,3 mil vistos de trabalho a estrangeiros. Segundo o jornal “O Globo”, um aumento de 32% em relação a 2010 - e ainda haveria 400 mil profissionais dispostos a vir tentar a vida. Acrescente-se os brasileiros que voltam do exterior, graças ao cenário mais favorável, e surgem dúvidas se a relativa prosperidade brasuca segura essa peteca.

Dilma Rousseff pretende facilitar a entrada de mão-de-obra, hoje prejudicada pela burocracia kafkiana. Mas a detecção de 3 mil haitianos ilegais e tráfico humano na região Norte ligou um alerta, e o governo já fala americanamente em restrição de vistos para aquele país.

Como claramente há trabalho (sobretudo na construção civil e nas engenharias) e a taxa nacional de desemprego ronda os 5%, nada favorece uma xenofobia de molde europeu. Por ora, o mais perto de uma reclamação das ruas contra as hordas de estrangeiros ocorre no Rio, em razão da disparada de preços de imóveis e serviços trazida pelo interesse internacional que lota a cidade.

Mas, como até os visitantes se queixam de que tudo é caro, essa dureza mais nos une que separa.

*nome da coluna publicada sempre às quartas-feiras, a partir de hoje, no Destak de Portugal

12.1.12

CULTURA X DIVERSÃO, OU VOCÊ DANÇANDO

[Destak desta sexta, 13.jan.2012]

A relação com a música para dançar raramente é desonesta. E, sim, ainda é cultura


O que chamamos de internet 2.0, essa definida pela participação ativa do usuário na produção de conteúdo e nas redes sociais, é uma faca de dois gumes para a produção cultural. Democratizados os meios de produção e divulgação, qualquer um pode fazer sua música, seu vídeo, sua exposição de fotografias e estampar na rede. Mais: realça o papel do público sobre "o que importa", enquanto relativiza o do crítico.

Tudo isso reescreve os conceitos sobre quem é artista e sobre o que é cultura. Muita gente boa se perde nessa e até aponta metralhadoras verbais aonde não deveria. A velha pergunta “O que é cultura?”, surrada e espancada nas melhores (e piores) faculdades de ciências humanas, parece não achar respostas. Mas só para quem não quer ver que hoje faz-se cultura até no Twitter, essa praça pública de aforismos e frases de efeito que Nelson Rodrigues, Oscar Wilde e Blaise Pascal amariam.

O cantor Michel Teló, sucesso mundial made in Brazil, é obviamente um produto cultural, guiado por diretrizes que têm a ver com o gosto popular. Mirando no que viu e acertando no que não viu, atingiu-se um fenômeno internacional. O número de exibições no YouTube de “Ai, Se Eu te Pego” supera o de hits de estrelas internacionais. E esse êxito total vai falar muito sobre as exigências estéticas daqueles que abraçam a canção no momento em que elas a ouvem.

As pessoas querem dançar a seu modo e elas não fazem isso com qualquer repertório: isso impulsionou a valsa vienense, o forró nordestino, o samba, o funk carioca. Michel Teló cumpre um papel, quase um serviço, quando compreende como agradar tais fãs.

(Aliás, para efeito de contraste, há no Rio um bloco de Carnaval chamado Mulheres de Chico, que se dedica ao repertório do Buarque. Amo as músicas e as letras, mas sinceramente, não funcionam na folia: dão sono, mesmo com toda a erudição envolvida, porque não escolhem refrães fáceis, e Carnaval sem refrão não rola.)

Enfim, não é de hoje que se produz música (e cinema, e literatura, e teatro, e artes visuais) com o intuito de agradar um público e extrair o$ fruto$ desse sucesso. É uma relação raramente desonesta, e há mais artificialismo em certos discos de MPB do que em música feita simplesmente para divertir os quadris. É claro que sempre podemos perguntar o que é que a nossa cultura pretende e reflete de nós hoje. Feliz ou infelizmente, talvez tenhamos que rebolar para responder.