31.1.13

Santa Maria e a inevitável dor no jornalismo vivo





Foto: Agência Brasil

A tragédia de Santa Maria desperta dúvidas. Quantas casas noturnas são legalizadas? Quantas não são porque a fiscalização corrupta não lhes permite? Qual é o significado de um alvará, se pode ser obtido via suborno ou negado até haver suborno? É certo a casa usar comanda como cárcere privado? E por aí vamos.

A discussão que me interessa hoje, no entanto, é a crítica à cobertura jornalística do fato: não foram poucos os veículos sérios acusados de fazer sensacionalismo com imagens duras e desabafos emocionados, em vez de operar “jornalismo estritamente investigativo”. Exageros são condenáveis, mas confesso um incômodo com a enorme prevenção à emoção.

Embora se faça notícia hoje em tempo real, jornalismo investigativo sério ainda exige tempo. Apurar culpas, conferir as leis e traduzir as versões para o receptor médio não é um conjunto que se produz nos minutos posteriores a um horror que vira interesse público imediato. Equilibrar a demanda por notícias instantâneas para que não se menospreze a dimensão do fato nem se sonegue informação ao receptor de TV/rádio/ internet com a execução do esforço jornalístico de fôlego é um dos maiores desafios de qualquer veículo.

No entanto, em paralelo às necessárias investigações sobre as causas – que sim, estão sendo noticiadas – sempre haverá espaço para seus efeitos. Na dimensão dum massacre, o jornalismo não tem por que ser um mero enfileirar de dados, como um prontuário de delegacia, ou impassível e descritivo como um poeta parnasiano diante de um vaso chinês. Santa Maria foi perturbadoramente real.

É preciso contar as histórias para que os 236 mortos (mais um morreu na madrugada desta sexta) ganhem rostos humanos, reconhecíveis a qualquer um como iguais, a fim de que o país não se sinta tão distante de Santa Maria quanto se sente, por exemplo, da matança numérica na Síria. A boate Kiss foi o último capítulo de jovens ceifados por estupidez genuinamente brasileira. As vidas esfaceladas não são apenas as dos mortos, mas também de parentes e de cada mãe que se fará as perguntas do 1º parágrafo quando seu filho sair à noite.

Só numa cultura esterilizante, viciada em aparência de felicidade e sobriedade – que pode ser aguda apatia –, a foto do “Estadão” da última segunda-feira - uma mãe ajoelhada e inconsolável que abraça um caixão - pode ser tida como de mau gosto. Há pessoas que têm o que dizer, e dar voz à dor é homenageá-las. Relatar que os celulares dos mortos tocaram é empatia com policiais e bombeiros. É humano e biográfico, como o mais vivo jornalismo.

Seria lindo se todo repórter soubesse como perguntar o que sente um pai que chora – "É possível dizer alguma coisa em meio a tanto sofrimento?" ainda me parece ser a saída mais correta. Mais fácil, porém, será aceitarmos que nem todo mundo é inoxidável numa cena de horror. Erros ocorrem, exageros merecem crítica, e a exposição de corpos em material jornalístico sempre será tema para as mais dissonantes opiniões.

Mas defender que o microfone e a câmera nem se dirijam ao enlutado é um falso respeito ao leitor/telespectador. Certas dores, se quiserem, têm que sair no jornal.

24.1.13

"Amor", velhice e os dependeres





Posso me orgulhar de estar com os trabalhos adiantados em relação aos indicados ao Oscar. Resolvo “Lincoln” neste fim de semana, já passei por “Argo”, de Ben Affleck, “Django Livre”, a comédia faroeste de Quentin Tarantino, o chileno “No”, de Pablo Larraín e o belíssimo “As Aventuras de Pi”, de Ang Lee, que inaugura o gênero 3D-com-história.

Mas talvez não haja filme mais dolorido e recomendável que “Amor”, do austríaco Michael Haneke, favorito ao prêmio de filme estrangeiro e ainda indicado a melhor filme. O mote é simples: um casal de idosos franceses sofre uma mudança de rotina quando Anne (Emmanuele Riva) tem um acidente vascular cerebral. A partir daí, seu marido (Jean-Louis Trintignant)   se desdobra no cuidado dela , que não quer ser internada, asilada e nem mesmo visitada devido ao seu estado – o que cria impasses entre o casal e a filha (Isabelle Huppert).

“Amor” é um filme que disseca seu título de forma econômica. É doce e desolador quando cria a empatia da plateia com os atores, porque ali vemos que até o melhor dos cenários que o amor romântico nos propunha – “felizes para sempre” – não cessa de encontrar desafios.

A doença obriga Anne a entregar seu orgulho às mãos do marido, que o defende com lealdade. E as limitações físicas de ambos vão delineando os limites deles como casal, transformando os dois em satélites que percorrem uma órbita estreita em torno da doença, que se torna cada vez mais onipresente.

E diante disso tudo, no espectador surge uma angústia profunda da nossa era de prevenções contra tudo: a situação exposta é daquelas inevitáveis; resta-nos apenas sonhar – ou rezar, a depender da crença – que a velhice não seja um fardo para nós ou para os outros, como se isto fosse possível sem uma morte precoce.

Com discrição nas intenções, o filme nos conduz à nossa natural solidão, apartados do mundo, cada um na sala assistindo a duas possibilidades de si mesmo – e talvez essas reflexões façam o espectador até esquecer-se do filme enquanto ele é projetado na tela. Simples como seu título, o longa de Haneke convida-nos a contemplar a hipótese de um dia depender de alguém – ou da saúde desse alguém.

17.1.13

E a poesia vai deixar de ser 'inútil'





A Inglaterra, você sabe, é o maior produtor mundial de estudos de universidades britânicas – aquelas descobertas tão surpreendentes quanto duvidosas a respeito de certa coisa provocar um dado efeito. Agora, descobriram que a poesia pode ser útil.

Sim, logo ela, descrita pelo curitibano Paulo Leminski (1944-1989) como um dos “inutensílios” do mundo e “parte das coisas que não precisam de um porquê”, como a amizade e o orgasmo. Mas, se certas amizades são por interesse e certos orgasmos são contados em calorias queimadas, à poesia ainda não haviam agregado nenhum outro valor ou função.

Foi assim até a última terça, quando a Universidade de Liverpool submeteu 30 voluntários a clássicos da poesia de língua inglesa como Shakespeare, John Donne (1572-1631) e o moderníssimo Philip Larkin (1922-1985), jamais editado no Brasil. Os estudiosos descobriram que os cérebros dos estudados disparavam quando diante de palavras incomuns ou frases com uma estrutura semântica complexa. Por outro lado, quando lida uma versão mais coloquial do texto, o cérebro não trocava a marcha. Os estudos em andamento devem levar a tratamentos de pessoas com problemas psicológicos, asilos, prisões e – quem diria! – escolas. Espera-se que a poesia aja até melhor que livros de autoajuda. Uou.

Nada disso soa novo para o leitor de poesia: um bom poema tem um efeito imediato, devastador, químico, e permanece no cérebro para ser decifrado pelas entranhas da experiência do leitor. A cada pessoa, os significados variam, e os versos, pelas palavras escolhidas e por sua musicalidade, acabam por ser uma chave que “destranca” algo em nós. O que parece ser “sobre nada” se materializa e lança luz sobre aquilo que cotidianamente nunca é dito.

Foi o alemão Schiller – em 1795! – quem disse que nossa era é regida pela deusa Utilidade, “à qual todos os poderes devem servir e todos talentos devem jurar fidelidade”. Talvez a poesia enfim cumpra o destino de tudo que se move: existir para certa finalidade a mais. Mas há um lado bom:

O céu sublime tomou seu posto, apoiando-se no muro.
É como uma oração ao vazio.
E o vazio volta seu rosto a nós
e sussurra:
Não sou vazio, sou aberto. 

(Tomas Tranströmer, poeta sueco vencedor do Nobel de Literatura em 2011 em “Vermeer” (2004). Tradução minha do inglês.)

10.1.13

"Coisas baratas, pessoas caras"





Nunca tinha pisado nos Estados Unidos até decidir passar o Ano Novo em Nova York. Não vi a bola cair na Times Square sob um frio próximo de 0° porque, como se sabe, é uma tremenda roubada. Acabei passando a virada em casa de brasileiros no bairro do Harlem, onde um amigo, Rodrigo Feijão, sintetizou-me seu pensamento sobre preços nos EUA.

Eu estava impressionado com a confirmação de que os itens são bem mais baratos que no Brasil. Um computador iMac de 21,5 polegadas comprado em NY, com garantia de três anos, taxado nos EUA e declarado na Alfândega brasileira sai por cerca de R$ 3.800. O mesmo computador comprado no Brasil custa R$ 6.200, sem a mesma garantia. A mágica? Um regime de impostos muito mais racional que o nosso mais o barateamento da produção, com mão-de-obra localizada em geral da Ásia – além da abusiva margem de lucro praticada no Brasil.

Feijão, que mora lá há dois anos, resumiu para mim: “Nos EUA, as coisas são baratas e as pessoas são caras. Nenhum profissional perde com você um minuto a mais do que o necessário, porque esse tempo é caro”. Diante desse imenso poder de síntese, tive que concordar.

Não significa que americanos sejam grosseiros. Na média, prestadores de serviços e até transeuntes abordados em busca por informações são afáveis. O que fica muito claro é que, diferentemente do que é comum no Brasil, ninguém assume uma responsabilidade maior que a da sua função para fazer com que você se sinta bem. Dificilmente haverá um jeitinho para fazer uma vontade sua que não estava no script. Quem insiste em perguntas já respondidas, tentando levar alguma vantagem ou burlar alguma regra, acaba por ver um semblante claro de tédio e imediato desinteresse.

O brasileiro cordial, habituado a simpatizar a fim de dar ou obter jeitinhos, se espanta. Depois nota que a necessidade de “gerenciar o clima” nas relações de trabalho e nas prestações de serviços nos barateia muito como indivíduos: evitar o corpo-a-corpo, não se queixar, engolir o sapo do desrespeito em qualquer tipo de prestação de serviço e até no trabalho – como se toda abnegação fosse elogiável.

O fato de sabermos que existe um Brasil que só funciona para poucos privilegiados e bem relacionados alimenta esse clima de milhões de indivíduos em constante liquidação de si mesmos: pessoas que pagam mais do que precisariam num sistema que lhes dá pouco valor.

3.1.13

Pagodinho, Genoino e a inconveniência





O Brasil é um país esquisito. A velha certeza sempre se reforça quando retorno de viagens ao exterior e abro as páginas dos jornais. As notícias de ontem já me são absolutamente suficientes para ver que estamos suficientemente em forma no diz respeito a perder a chance de ficar calado.

Abro o Facebook e descubro um novo alvo da maledicência nossa de cada dia: trata-se de Zeca Pagodinho. Enquanto o sambista auxiliava a região de Xerém, coordenando a arrecadação de doações para os que foram afetados pelas enchentes, algumas pessoas o criticavam, afirmando que: 1) o cantor se aproveitava da desgraça alheia para fazer publicidade; 2) a bondade tem outros heróis, anônimos tão ou mais merecedores de reconhecimento quanto ele.

Pergunto-me se passou pelas cabeças dos críticos internautas rede-socialistas fazer algum tipo de doação aos desalojados enquanto esquadrinhavam as intenções do Sr. Pagodinho. Não terei respostas conclusivas.

Por fim, vejo a esquisita posse de José Genoino ao seu mandato de deputado federal, ainda que réu condenado do mensalão, autor de assinatura que liberou a tomada de empréstimos fraudulentos pelo PT junto ao Banco Rural. Sua diplomação no legislativo testa a compreensibilidade da confusa Constituição de 1988 e a razoabilidade do direito penal brasileiro. Afinal, permite que um homem contra a lei se torne legislador – está condenado, mas não há acórdão, há tempo para recursos, tudo precisa ser esgotado. A democracia tem contradições interessantes; veremos em breve como esta última se resolverá.

Aí vem o ilustre deputado Oswaldo Reis (PMDB-TO) e arremata, a fim de explicar seus aplausos à posse de Genoino: “Ele merece respeito pela sua história”. Penso que o deputado não entende o conceito de história, nem o conceito de crime, nem o conceito de legislatura. A posse de Genoino é para ser analisada, debatida, esquadrinhada, criticada. Aplaudir sua história sem observar a imensa e mais recente mancha de seu currículo é ser seletivo da pior maneira possível.

Aplaudir a história de Genoino durante sua esquisita posse é como criticar a atitude beneficente de Pagodinho em meio às enchentes: são monumentos nacionais à inconveniência, dois enormes exemplos da inadequação brasileira durante as oportunidades de manter o silêncio.