22.2.02

A tempestade e eu

As ruas feitas córregos e rios,
As roupas ensopadas, os bueiros
Entupidos. Escutam-se os primeiros
Trovões, quedas de postes, assovios;

Sob as nuvens de cinza e os céus sombrios
Sirenes, ambulâncias e bombeiros,
Os gritos aos que fogem, corredeiros,
Rumores de tragédias, arrepios,

O desabrigo enchente após enchente...

(Tu tens pensado em mim ultimamente?
Ando com tantos sóis no meu olhar...)

... até que o cinza some, fuzilado
Por raios dum alívio esperançado,
A bonança que exige retornar.

17.2.02

Diálise da Alma

Minha alma pesa como um caixão de amores
Cujas alças não quiseste carregar.
São cefaléias, depressões e dores, esperanças malogradas,
Desenganos que me foram trazidos pelo otimismo
Dos que nunca souberam se entregar.

Doente, sobre a maca de um corpo que não a deixa repousar.
Ela pesa sobre mim, e lhe restam poucos movimentos.
Sofre, como se lhe restassem poucos dias.
Recusa o apetite do sexo, recusa mais um confortável travesseiro, e conformada,
Não pretende perturbar-me exigindo-me cuidados.

Como o melhor dos enfermeiros,
Preparo a diálise das almas.
Porque é preciso saneá-la das impurezas da dor,
Dos resíduos de todo o desespero infligido:
É preciso salvá-la de mim mesmo.

E é assim que eu penso em ti, no que me fazes sentir
Na imposição da tua ausência, quando consentes que eu te ame
De todo o coração e toda a crença e todo o espírito e simplesmente partes,
Como se tudo o que desejo fosse estranho
Ao teu desejo.

E eu deixo que invadam meus ouvidos
Todas as músicas que amamos juntos. E eu vejo como é estranho
Escutá-las sem os teus ouvidos do meu lado.
E eu me sinto amputado, infeliz, frustrado.
Queria não te desejar unicamente.
Invejo aqueles perdidos,
Os que não sabem o que querem da vida, e assim,
Consideram quase todo o bem que aporta como lucro.

Eu não sou assim.

Tudo o que é diferente de ti é derrota em minha vida.
As coisas que não têm origem em ti não reconheço
Como um bem.
Na verdade, são quase nada. E de nadas estou cheio.
Os sorrisos, os olhares, os elogios, o aplauso, o dinheiro,
O que significam se não são a ínfima parte do que quero?
A minha maldição é saber exatamente o que desejo: a tua volta,
Como se tu soubesses os motivos que me trouxeram a este mundo,
Por onde devo andar,
Onde devo dormir.

Eu penso nestas coisas e choro. Não aquele choro que envergonha,
Aquele que enrubesce a face e que exige esconderijo, aquele que é fraqueza.
Choro porque há mais vida em mim quando recordo
Que te amo desta forma.
E à medida que o pranto escoa,
Drenagem de excreções retidas,
Eu me sinto mergulhado em bálsamos leves.
Uma vertigem amistosa toma conta dos meus ânimos, a cabeça pende,
De um lado a outro, circularmente e devagar,
Um vácuo obscuro no pensar me permite ser inda mais leve
E a gravidade me perde, rumo ao infinito dos desprovidos de razão.
E eu posso ir longe nesse efêmero instante
De sadia insanidade.
O peso dos meus ombros se afasta de mim (talvez meus próprios ombros
Façam o mesmo, como se me livrasse da carcaça que carrego),
E assim, tornado alma e desgarrado das torturas,
Eu posso amar-te em toda essência, ser mais inalcançável que o teu amor,
E mais incompreensível que a recusa tua.

As lágrimas no chão, minha alma no céu, meu corpo à deriva,
Um amor que te espera;
Espalho-me aos poucos em lugares e funções
Que só têm razão de ser e final a celebrar
Na tua volta.

14.2.02

Soneto das cinzas

Manhã de quarta-feira, e o carnaval
Termina, nessas cinzas de euforia,
Num último suspiro de folia,
Num beijo suado, num abraço e um tchau.

São finadas a febre e a fantasia.
O estandarte é esquecido a meio-pau,
E ficam só cansaços do final,
E nos resta dormir, que já é dia.

Adeus a essa alegria fevereira,
Que ninguém sente mais na quarta-feira
Depois que silencia o último bumbo.

E eu me encontro de novo com a rotina,
Vestida de pierrô sem colombina,
O eterno fim de festa ao qual sucumbo.