21.2.13

O rebaixamento do piso cultural




Um recente debate na imprensa questionou a qualidade da arte do Brasil: a provocação surgiu na “Carta Capital”, despertou artigos e entrevistas e todos saíram atrás dos Portinaris, Chicos e Machados atuais.

O antropólogo Hermano Vianna – que concebeu o “Esquenta”, de Regina Casé – defende que a produção cultural no Brasil nunca foi tão intensa, sobretudo nas favelas, que se entretêm com o que fazem; não há vácuo à espera da colonização da elite. O escritor Michel Laub, na “Folha”, também deu boa resposta: lembrou que a descentralização da produção cultural, causada pela internet, quebrou a lógica em que indústria (canais de TV, gravadoras, editoras) e crítica exerciam um aparente “controle de qualidade”, “ordenando” o que era válido ou não. E concluiu que os artistas “de verdade” sempre foram exceções dentro dum caldo de puro e descartável entretenimento.

Hermano não me surpreende, sendo ele antropólogo: formas rudimentares de cultura e folclore o atraem academicamente.

Já a resposta de Laub é quase indiscutível: o artista-de-verdade, essa pessoa interessada em expressar algo para além do afago no gosto popular, é sempre um milagre; não existe a “indústria de gênios”.

Mas não sou tão otimista a ponto de negar o forte rebaixamento do piso cultural que cria legados, causado por velhos carmas.

Saímos da indústria cultural absolutista e chegamos ao momento do público-deus a ser agradado sem criar  ambiente suficiente para a qualidade que venha a surgir hoje. No país da educação que não forma leitores, do imenso abismo social e do raro fomento, o receptor médio tem muito mais dificuldade de se conectar com o autor “alto” e vice-versa.

O público primário e acrítico é obviamente mais numeroso que o exigente, na proporção direta da desigualdade; o diálogo tende a ocorrer só pela facilitação, um risco ao autor. A separação desses Brasis acentua também uma impressão habitual do grande público e da mídia-classe-média: a de que nossos cinema, teatro, literatura e música (esta em menor escala, porque o brasileiro dança cantando) são tão duvidosos quanto uma garrafa de uísque nacional.

E enquanto isso os importados não cessam de chegar fortes.

Onde há mais educação e menos desigualdade, o artista local não é hit instantâneo, mas tem espaço e atenção que o sustentam até que o público mais amplo o testa por sua persistência. Aqui, sem golpe de sorte ou mecenas, o talento decide agradar para viver ou, pior, desiste.

14.2.13

O que não esperar do próximo papa





A Igreja Católica é uma das instituições mais fascinantes do mundo: milenar, mística, política, monárquica, dona de prédios e obras magníficas. Onipresente do nascimento à morte, mãe dos feriados mais arraigados de nossa cultura, familiar como uma madrasta rigorosa. Por isso, até não católicos se atraem pelo debate sobre o significado da renúncia de Bento 16 e a que rumos seu sucessor conduzirá o rebanho de 1 bilhão de fiéis. 

A saída de Ratzinger foi humildade ou jogada para fazer valer sua visão de Igreja para o século 21? Dificilmente saberemos. Mas o conservador Bento 16 foi ousado demais ao abrir mão da vitalicidade do cargo: a ideia de um pastor que desce do trono antes de subir ao Céu deixa a Igreja mais “material” do que o papel a que ela sempre se propôs – e o qual Bento apoiou em seu pálido papado – e é, a meu ver, má influência para quem tem por negócio convidar a uma vida acima das dores, desejos e pragmatismos.

Mas os cardeais que ele e João Paulo 2º nomearam são a totalidade dos eleitores do próximo conclave. Estão mais ou menos alinhados com o discurso de uma Igreja com mais ortodoxia e menos flexível às demandas temporais. E a verdade é que fiéis não querem que sua religião “se reconcilie” com o mundo: preferem-na segura, reconhecível e imutável.

Ninguém imagina que haverá um retorno maciço de católicos às missas caso a Igreja passe a recomendar camisinha ou tolere o aborto e a homossexualidade. O mais provável é que as pessoas fiquem exatamente onde estão: católicos praticantes na liturgia e católicos não-praticantes transando como quiserem, com um pouco menos de culpa.

A verdade é que tais dogmas não mudarão. Úteros operantes são o principal patrimônio das religiões institucionalizadas – a Bíblia é quase toda sobre isso. Ainda que alegue a autoridade concedida pelo Espírito Santo, é no volume de seu rebanho que as religiões mantêm influência e verbas. Tudo que baixe taxas de natalidade faz o rebanho minguar e assim diminui o número de casamentos, batismos, alunos e “salvações”. A Igreja apoia a abstinência sexual porque está escrito - e isso acelera casamentos. O que falta ao Vaticano é vender midiaticamente esse modo de vida como alegre, inspirador e até jovem, ensinado por um vovô bonachão.  

Em vez do papa reformador, a fumaça branca deverá anunciar um marqueteiro.

7.2.13

Carnavais que larguei pelas ruas


É  preciso respeitar meu Carnaval
– lá de onde eu sou, a coisa é séria. 
Se a cidade decidiu pela alegria,
a fantasia tem seu valor,
e é preciso receber e dar amor 
ainda que não vingue essa raiz, 
e até a quarta-feira seguir o tambor
que no meu peito bate mais feliz (é preciso!).


Minha foto preferida de Carnaval, com Alice, que estreava na folia em 2010


Os versos acima são meus, para um samba-enredo que nunca terminei. São da época em que eu decidi largar toda a minha arrogância de roqueiro-brasileiro-eurocêntrico e experimentei mergulhar no universo dos blocos de rua do Rio – acho que foi em 2006. Dei sorte de ser natural duma cidade que vive como poucas essa febre fevereira que ordena a alegria da noite de sexta até a Quarta-Feira de Cinzas.

O engraçado é que esses versos surgiram de um ficção que nunca escrevi. Sempre imaginei um morador de algum subúrbio da cidade, determinado a fazer um grande bloco no bairro para onde havia se mudado com sua mulher – e onde jamais aconteceram desfiles.

Na minha cabeça, esse obcecado por Carnaval sofria naquele bairro hipertranquilo. Levaria tempo para convencer os vizinhos da necessidade de dar a crianças, adultos e idosos a alegria que toda a cidade vivia. Não faria sentido para ele permitir que aquele oásis de tranquilidade urbana fosse imune até mesmo ao Carnaval.

O homem então arrecadaria fundos, venderia camisas do bloco, arregimentaria a banda, rabiscaria versos para uma marchinha passável; enfim, ele se responsabilizaria por tudo de modo a recriar sua ideia de Carnaval, sem ajuda dos outros, tomados pela apatia. Até que brigaria com sua mulher.

Ela se sentiria deixada de lado nesse tempo todo, explodiria raivosamente na concentração do bloco e iria embora com as crianças, enquanto o desfile iniciaria seu percurso, deixando nosso anti-herói sentado no meio-fio. O Carnaval triunfaria na vizinhança, à custa de uma grande tristeza daquele homem que quis compartilhar uma ideia de felicidade.

E aí viria um bêbado, testemunha ocular de todos os eventos, que se sentaria ao lado do homem e, dando um gole na cerveja, estenderia uma palavra de solidariedade masculina: “Essas mulheres não respeitam nem Carnaval...”

Nunca escrevi essa história, assim como não desenvolvi as estrofes do samba. É o lado bom da alegria: quanto mais improdutiva, melhor.