20.12.02

Moça diante de esmeralda

Ela busca um reflexo na pedra.

Precisa ver-se de um jeito novo,
rico e diferente.
Carrega sobre os ombros o peso de uma idade
Deixa sob os pés uma cidade já distante
Chegou aqui faz tempo, e nada achou que parecesse
aquilo que buscava.
Anda acompanhada pelos muitos estranhos dessa estrada
Não sabe o nome deles, mas suas intenções são
– ocasionalmente –
Boas, e isso lhe bastava.

Mal-tratada pelos que conhecia,
Cansou-se, e foi viver de solidão.

Sozinha descobriu-se maior que este planeta,
Longe descobriu-se plena de si mesma.
E plena e só descobriu-se sem sentido,
Como uma Bíblia sem cristãos.

Por isso,
Continua diante dessa pedra, estática,
À espera dum reflexo, duma opinião de pedra,
Que sem hesitação lhe diga
“Sorri, moça; ainda continuas
Linda.”

11.10.02

Várias formas

Havia várias formas de dizer-te nada.
Eu nada dizia, você nada falava,
E tudo quanto se calava
Nos repetia a cada instante
Que havia amor ali, mais nada.

Havia várias formas de sentir-te amada
Uma delas, em silêncio, celebrava
O sono, o sexo, o carinho que mudava
A minha vida e insinuava
Que o tempo ali passou, mais nada.

Havia várias formas de cantar-te cada
Canção que inconscientemente recordava
A dor de algo que a gente já perdia
Pelos cantos, sem ruídos, se escondendo,
Até que logo não se achou mais nada.

Havia várias formas de virar-te a cara
Fingir que não a vi, quando passava
Por todos os lugares onde eu ia
Presente ou não, psíquica cilada
Disposta a se vingar, mais nada.

Havia várias formas de dizer-te nada.
Eu nada dizia, você nada falava,
E tudo quanto se calava
Nos repetia a cada instante
Que havia amor ali, mais nada.

12.9.02

Tão gentil, tão honesta no saudar...

Tanto gentile e tanto onesta pare
la donna mia quand'ella altrui saluta,
ch 'ogne lingua deven tremando muta ,
e li occhi no l'ardiscon di guardare .

Ella si va, sentendosi laudare,
benignamente d'umiltà vestuta;
e par che sia una cosa venuta
da cielo in terra a miracol mostrare.

Mostrasi sì piacente a chi la mira,
che dà per li occhi una dolcezza al core,
che 'ntender no la può chi no la prova;

e par che de la sua labbra si mova
un spirito soave pien d'amore,
che va dicendo a l'anima: sospira.

Dante Alighieri, em La Vita Nuova
_______________________________

Tão gentil, tão honesta em seu saudar
É minha dona, e tanto me parece,
Que minha língua dobra, a alma emudece,
E os olhos nem se arriscam num olhar.

Assim louvada, segue a caminhar,
Trajando a veste que a humildade tece;
Como algo que dos Céus à Terra desce
Vinda para milagres nos mostrar.

Só contemplá-la enorme bem inspira,
Pois dos seus olhos flui uma doçura
Que só compreenderá quem talvez prove.

E em seus lábios, parece que se move
Um 'spírito de amor de tal brandura
Que vai dizendo ao coração: suspira.






10.9.02

Paranóia

No alto daquele prédio,
Naquela calçada,
Fitando da janela,
Estão todos, todos
Contra mim.

Unidos sob um sólido ideal, repetem meu nome em sórdidas tramóias,
Sou seu mais digno alvo, última coluna a derrubar.

Na mesa daquele restaurante,
Na escadarias do Municipal,
Nas estações do metrô,
Todo e qualquer instante é pouco para eles, eles todos, todos contra mim.

Eles e seus malditos códigos, sinais,
Criptografias, isso que atravessa a mente e mente e mente e mente,
Esse calvário diariamente entre o que já não sei se é
E o que é simplesmente.

Eles me dizem em silêncio as coisas que não ouço
E você no meu lugar talvez nem entendesse.

É verdade é sério é de verdade e eu juro que é
Acredito na minha intuição
Tanto quanto em minha imaginação.

Atrás de você,
Ao nosso redor,
Diante da sombra trêmula que vela por nós dois,
Eles conspiram, eles querem sua ajuda,
Eles e você, sim,
São talvez vocês todos, juntos,
Todos contra mim.

Eles querem me matar porque eu os fiz viver e posso assassiná-los
E você no meu lugar talvez sobrevivesse.
Só que eu nem posso estar no seu lugar.

(O horizonte se afasta lentamente de mim enquanto
Um sopro gélido de vento pousa a mão sobre o meu ombro e some.)

No elevador,
No túmulo,
No Céu,
Eles, você e eu, Ele, enfim,
Todos juntos, vamos, todos nós agora
Contra mim.

16.8.02

Poema em 3x4

Um 3x4 teu em minha mesa
Me contempla,
Me vigia,
Vela o passar da tarde do meu lado e
me assedia,
Pedindo uma olhadela.

Um 3x4 teu é uma janela,
Onde às vezes
Eu te vejo
Quase sorrindo tímida e pensando
Num desejo,
Que apenas nessa foto caberia.

Num 3x4 teu sorri meu dia.

7.5.02

Soneto do Amor tal qual ele é
(para Aninha)


Quando olhar para mim, jamais procure
O homem perfeito. Tente achar primeiro
Alguém que se dedica por inteiro
Para que o nosso amor muito perdure.

Que ninguém um amor eterno jure,
Porque o Tempo é do mundo o bom coveiro
Que enterra (de costume e sorrateiro)
Sentimentos, até que nada dure.

Pois tudo está entregue à própria sorte;
Se não termina aqui, finda na morte
E até quando os seus dias serão meus?

Não importa. Se o fim é inevitável,
Façamos desse amor algo agradável
E um eterno adiar-se desse adeus.

(em fev/1997)

21.4.02

Soneto do Amor que espera a volta

Sabes que existem coisas que sentimos
Num momento, o qual vê-se claramente
Que é único, difícil, diferente,
E a eternidade dele perseguimos?

É algo que choramos, ou que rimos,
E que se vive a dois, intensamente,
Que não se encontra assim, em toda gente,
E nossas vidas nele refletimos.

Isto passei contigo, e hoje lamento
Não ter eternizado esse momento
Do modo como sei que merecias.

Pra me entreter, preparo-te alegrias
E te aguardo, ninando um sentimento
Que não se perde na erosão dos dias.

15.4.02

Condenação

Se não quiseres ver-me, faze-o bem;
Rasga as cartas, esquece das memórias,
Apaga todas as dedicatórias,
E queima tudo que for meu também.

Se falarem de mim, pergunte: “Quem?” -
Mas não procure ouvir outras histórias.
Mesmo que eu morra, ou cubra-me de glórias,
Não digas o meu nome a mais ninguém.

Nem olhes para trás, que me envergonha
Reconhecer que nada há que ponha
Teus olhos a favor do homem ruim.

Faze o que convier ao teu bom gosto:
Que o tempo passará, verás meu rosto,
Mas nem querendo vais lembrar de mim.

12.3.02

Lição

Das pessoas, aprendi que um dia vão-se;
Todos os dias, milhares de adeuses não são ditos,
Todos as horas são tarde demais,
As portas batem sem aviso, os dias não mais voltam,
Somem segredos, esquecem-se carinhos em gavetas,
Recordações de ouro se perdem nos caixões de madeira.
Telefones ocupados, secretárias eletrônicas,
Cartas sem destino, por-enquantos sem presente,
Desaparecemos na rotina dos ônibus e dos sinais de trânsito.

Por onde ando? De quem já desapareci?
Abandonei-te, sei, mas me buscaste? Ou deixaste simplesmente
Que eu me permitisse prescindir da tua despedida?
Ai, amor, eu queria tanto ser eterno,
Mas não sei se agüentaria ser sempre abandonado...
Porque dos outros, eu sei que um dia vão-se,
Sem querer, sem pedir, sem saber.
Não é da nossa vocação o estarmos juntos,
Não temos o talento pro convívio...
Fracassamos, e ninguém mais nos acha.

A perfeição de Deus está na Sua permanência,
Onde quer que Ele de nós se ausente.
Dos outros, eu só sei que hão de ir embora.
De ti, só sei que já te foste
Daquele, que abandono aqui.

9.3.02

Algo em meus olhos que perdi nos teus

Algo em meus olhos que perdi nos teus
Existe, e que não quero ter de volta.
Desejo apenas vê-lo em tua face,
Dia após dia,
Pois, se o haver perdido fez-me assim,
Com algo de cegueira, sem razão em mim,
O que enxergo de meu quando me encantas
Já me permite ver tudo que quero.

Algo em meus olhos que perdi nos teus
Existe, e te faz linda como apenas eu posso apreciar,
Por conta do que podes ver
Somente em mim.

22.2.02

A tempestade e eu

As ruas feitas córregos e rios,
As roupas ensopadas, os bueiros
Entupidos. Escutam-se os primeiros
Trovões, quedas de postes, assovios;

Sob as nuvens de cinza e os céus sombrios
Sirenes, ambulâncias e bombeiros,
Os gritos aos que fogem, corredeiros,
Rumores de tragédias, arrepios,

O desabrigo enchente após enchente...

(Tu tens pensado em mim ultimamente?
Ando com tantos sóis no meu olhar...)

... até que o cinza some, fuzilado
Por raios dum alívio esperançado,
A bonança que exige retornar.

17.2.02

Diálise da Alma

Minha alma pesa como um caixão de amores
Cujas alças não quiseste carregar.
São cefaléias, depressões e dores, esperanças malogradas,
Desenganos que me foram trazidos pelo otimismo
Dos que nunca souberam se entregar.

Doente, sobre a maca de um corpo que não a deixa repousar.
Ela pesa sobre mim, e lhe restam poucos movimentos.
Sofre, como se lhe restassem poucos dias.
Recusa o apetite do sexo, recusa mais um confortável travesseiro, e conformada,
Não pretende perturbar-me exigindo-me cuidados.

Como o melhor dos enfermeiros,
Preparo a diálise das almas.
Porque é preciso saneá-la das impurezas da dor,
Dos resíduos de todo o desespero infligido:
É preciso salvá-la de mim mesmo.

E é assim que eu penso em ti, no que me fazes sentir
Na imposição da tua ausência, quando consentes que eu te ame
De todo o coração e toda a crença e todo o espírito e simplesmente partes,
Como se tudo o que desejo fosse estranho
Ao teu desejo.

E eu deixo que invadam meus ouvidos
Todas as músicas que amamos juntos. E eu vejo como é estranho
Escutá-las sem os teus ouvidos do meu lado.
E eu me sinto amputado, infeliz, frustrado.
Queria não te desejar unicamente.
Invejo aqueles perdidos,
Os que não sabem o que querem da vida, e assim,
Consideram quase todo o bem que aporta como lucro.

Eu não sou assim.

Tudo o que é diferente de ti é derrota em minha vida.
As coisas que não têm origem em ti não reconheço
Como um bem.
Na verdade, são quase nada. E de nadas estou cheio.
Os sorrisos, os olhares, os elogios, o aplauso, o dinheiro,
O que significam se não são a ínfima parte do que quero?
A minha maldição é saber exatamente o que desejo: a tua volta,
Como se tu soubesses os motivos que me trouxeram a este mundo,
Por onde devo andar,
Onde devo dormir.

Eu penso nestas coisas e choro. Não aquele choro que envergonha,
Aquele que enrubesce a face e que exige esconderijo, aquele que é fraqueza.
Choro porque há mais vida em mim quando recordo
Que te amo desta forma.
E à medida que o pranto escoa,
Drenagem de excreções retidas,
Eu me sinto mergulhado em bálsamos leves.
Uma vertigem amistosa toma conta dos meus ânimos, a cabeça pende,
De um lado a outro, circularmente e devagar,
Um vácuo obscuro no pensar me permite ser inda mais leve
E a gravidade me perde, rumo ao infinito dos desprovidos de razão.
E eu posso ir longe nesse efêmero instante
De sadia insanidade.
O peso dos meus ombros se afasta de mim (talvez meus próprios ombros
Façam o mesmo, como se me livrasse da carcaça que carrego),
E assim, tornado alma e desgarrado das torturas,
Eu posso amar-te em toda essência, ser mais inalcançável que o teu amor,
E mais incompreensível que a recusa tua.

As lágrimas no chão, minha alma no céu, meu corpo à deriva,
Um amor que te espera;
Espalho-me aos poucos em lugares e funções
Que só têm razão de ser e final a celebrar
Na tua volta.

14.2.02

Soneto das cinzas

Manhã de quarta-feira, e o carnaval
Termina, nessas cinzas de euforia,
Num último suspiro de folia,
Num beijo suado, num abraço e um tchau.

São finadas a febre e a fantasia.
O estandarte é esquecido a meio-pau,
E ficam só cansaços do final,
E nos resta dormir, que já é dia.

Adeus a essa alegria fevereira,
Que ninguém sente mais na quarta-feira
Depois que silencia o último bumbo.

E eu me encontro de novo com a rotina,
Vestida de pierrô sem colombina,
O eterno fim de festa ao qual sucumbo.

21.1.02

Soneto, depois de tanta conversa fora

Beethoven morreu surdo. Uma ironia,
Se virmos que, em seus últimos dez anos,
Não mais podia ouvir-se nos pianos
Que ressoavam sua maestria.

Ainda mais irônico, eu diria,
É pensar que a surdez lhe trouxe danos,
Fúrias e depressões e desenganos
Sem lhe negar a Nona Sinfonia.

E pode-se dizer que, até a morte,
O gênio pôde, sim, gozar a sorte
De ouvir Beethoven só, e nada mais.

Uma bênção, sem dúvida nenhuma,
Enquanto eu, que não sou de porra alguma,
Nem posso ensurdecer pra alguns boçais.

7.1.02

A Nobre Farsa no Jardim Botânico

Nesta terça-feira, 8 de janeiro, vou declamar poemas no projeto PONTE DE VERSOS às 20h30. Além de mim, também declamarão os poetas Braulio Tavares e Sandra Fernandes. Todos os leitores da Nobre Farsa serão bem-vindos.

Livraria Ponte de Tábuas
R. Jardim Botânico, 585
(à altura da Rua J.J. Seabra)
Jardim Botânico - RJ
organizadores: Thereza Christina Motta, Ricardo Ruiz, Gilson Maurity