25.8.11


JOBS E A 'APPLELOGIA' DA PRIMEIRA NECESSIDADE


Aposentou-se nesta semana Steve Jobs, principal executivo da Apple. Sua biografia na era dos computadores vai desde a popularização dos sistemas operacionais que usam o mouse até o iPhone e o iPad. Como empresário, reposicionou a Apple não só como gigante, mas como promotora de um estilo de vida, revolucionando comunicação, design e absorção de cultura.

A notícia girou as redes sociais, e surgiram inúmeras manifestações de gratidão e louvor a Jobs. Pedro Doria, um dos maiores especialistas brasileiros em internet, afirma que Jobs foi o “criador do nosso mundo”. Seu talento primordial, segundo Doria, era entender como as pessoas queriam ser servidas pela tecnologia. Não é pouca coisa: é a principal característica para ser inventor, publicitário, empresário, ou tudo ao mesmo tempo: sacar o mercado.

Mas o que sempre me espantou foi sua capacidade de transformar lançamentos comerciais em notícia. No mundo todo, a imprensa (e não só a especializada) dedica preciosos minutos a cada versão do iPhone – um acessório que era tratado como item de primeira necessidade. A genialidade de Jobs conseguiu fazer a imprensa cumprir o papel de anunciante mesmo quando o produto tinha apenas relativos saltos de qualidade. Pense em quantas vezes foram jornais e telejornais que o lembraram desses produtos.

A propaganda tem uma capacidade imensa de influenciar hábitos de compra, mas, quando é a imprensa que transforma um artigo comercial em notícia, a leitura é uma só: você realmente precisa ter. E talvez nós, jornalistas, nos tenhamos curvado demais a esses símbolos de status, até pela natureza de nossa profissão.

Se virmos mesmo no iPhone um artigo de primeira necessidade atual, a ponto de ser noticiado, estaremos quase perdoando os vândalos em Londres que invadiram lojas – e aí seriam dois erros de avaliação. Tais produtos são luxos. A constante “applelogia” jornalística dos lançamentos talvez tenha sido publicidade grátis em forma de notícia, reforçando esse assédio rumo ao mundo Apple.

O legado de Jobs nos trouxe conforto e praticidade preciosos, mas, como bom vendedor, criou também necessidades que não tínhamos, alimentando nossas vaidades e ansiedades. Teremos de lidar com isso.

18.8.11


A ÁRVORE DA VIDA E ALGUNS FRUTOS

Malick fala para um mundo que se acostumou a confrontar o que, de fato, é complementar

Novo filme de Terrence Malick e vencedor da Palma de Ouro em Cannes, “A Árvore da Vida” é uma obra imensa, que testa cada uma das mais fundas convicções.

Acompanha-se a formação da consciência de um menino (Hunter McCracken, prestes a fazer história) numa família dos anos 50. Ele é criado entre um pai severo (Brad Pitt), que por amor lhe impõe a lei natural do mais forte, e por uma mãe  (Jessica Chastain), que por amor lhe ensina bondades e belezas de fundo religioso. Essas duas forças – natureza e graça – são igualmente golpeadas, sem distinção, pela morte precoce de um dos seus irmãos. 

Enquanto uma personalidade se cria, Malick recorda outras questões, a consciência humana sobre o universo e seu papel nele, até o momento em que ambas as evoluções – a do menino e a do planeta – se confundem numa só. O menino se tornará Sean Penn, num mundo corporativo, instalado em arquiteturas arrojadas, e a sensação que se tem é que a evolução não nos tirou do caos. Sai-se do Big Bang para chegar à depressão – e ainda vive-se o peso de ser a espécie condenada a indagar se Deus é o criador ou se é só uma alegoria gasta, que a ciência ainda há de negar por completo.

Ao justapor o criacionismo do Livro de Jó (38:4,7) a imagens darwinistas, Malick vê o curso da evolução do Universo prosseguir no interior do homem. O menino é a evolução de sua família; é quem deve equacionar as lições impostas e pavimentar seu futuro. A evolução da humanidade depende dessas decisões pessoais, surgidas do confronto entre a natureza, que nos quer animais, e a graça, que nos inspira a ser bons. Um combate desigual, mas inesgotável, cheio de belas perguntas.

Como é artista, Malick não oferece uma resposta categórica; sua visão ambiciosa é um sumário das belezas sacras (na música que seleciona e nas imagens de epifanias e redenções) e das científicas (exatas, biológicas e até humanas) e fala para um mundo que se acostumou a confrontar o que, de fato, é complementar. 

Sob o denominador comum de Malick, a ciência objetiva explicar os “métodos de Deus”, enquanto a espiritualidade oferece paz e paciência diante do ainda não esclarecido e incentiva a minimizar as injustiças naturais. Juntas, contribuem para o mesmo fim utópico: decifrar a nós mesmos, o como e os porquês.

11.8.11


TIVEMOS OU NÃO UM NOVO 174?

O tiro que acertou o tórax da passageira Lisa Mônica Pereira, de 46 anos, durante sequestro de ônibus no Centro do Rio – bem como todos os outros 15 disparos contados na carcaça do coletivo – foi admitido como erro pelo secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, e pelo comandante geral da PM, Mário Sérgio Duarte. Lisa permanece em estado grave na UTI de um hospital público.

A pergunta agora é: houve um novo 174? A essa questão, o governador Sérgio Cabral responde: há enormes diferenças. Vejamos.

Em 2000, o ônibus 174 foi uma das mais marcantes tragédias do Rio de Janeiro. O ótimo documentário de José Padilha eternizou o horror perpetrado primeiro por Sandro do Nascimento, um ladrão entupido de drogas que já havia sido um sobrevivente da chacina da Candelária; depois pela imperícia de um soldado do Bope, que usou uma arma de baixa precisão para uma ação em que precisão era tudo; e finalmente, pelos PMs, que num ato justiceiro e, sobretudo, corporativo, deram fim a um Sandro dominado, já dentro de um camburão. Em 2000, a jovem Geisa foi a trágica vítima dessa sequência de erros. Hoje, Lisa é quem sofre com um tiro que parece originado dessa série de equívocos assumida pelo Estado.

Situações que envolvem reféns são dos maiores dramas que policiais podem viver. Lidam com a imprevisibilidade do criminoso que enfrentam, e põem à prova toda a qualidade do treinamento que receberam. Com a transmissão ao vivo pela TV, como aconteceu em ambos os casos, é inevitável que a repercussão de erro se multiplique: há a empatia imediata entre a opinião pública e os reféns. Vê-los indefesos sob a mira de várias armas numa situação corriqueira, como voltar para casa de ônibus, faz com que nós exijamos que tudo dê certo.

Respeito Cabral quando diz que a operação difere demais da de 2000 – a começar pelo governador, que não assumiu o comando da ação, conforme fez Garotinho em 2000. Poderes devem ser delegados a especialistas. Onze foram salvos, e nenhum preso foi justiçado.

Infelizmente, ainda temos uma mulher em estado grave num hospital, devido a um equívoco policial. E há uma decisão de não recolher todas as armas empregadas, o que soa ao pior do corporativismo. Portanto, seria de bom tom admitir que o que ocorreu no ônibus da Viação Jurema ainda guarda, no cerne dos fatos, semelhanças demais com o fatídico 174.

4.8.11

O DIA DO ORGULHO DE LAVAR UMA ROUPA


Agora vai. São Paulo, motor e radar desta Nação, locomotiva do progresso e dotada de uma Câmara de Vereadores antenada, São Paulo aprovou a criação do fabuloso Dia Paulistano do Orgulho Heterossexual.

Acredito que cada paulistano, vivo ou morto, deve agradecer à sua divindade preferida por este momento. Tem-se ali, naquela metrópole, vereadores que lutam com afinco por uma sociedade mais justa, humana e igualitária.

Orgulha-me cada vez mais que este país hiperdesenvolvido, este mastodonte tropical, esta verdadeira Suécia em português, tenha resolvido seus principais problemas estruturais, sua desigualdade social e o analfabetismo regado a água e farinha. Finalmente podemos dedicar nossas preciosas legislaturas a estes debates inteligentes, gerados por figuras de proa, como o vereador Carlos Apolinário, luz e glória da andante cavalaria do DEM. Seus eleitores regozijam-se totalmente representados, imagino, esperando só que o prefeito Kassab sancione.

O coração paulistano já pode se ufanar de contar com os melhores restaurantes, os engarrafamentos mais duradouros, o ar mais poluído e o terceiro domingo de dezembro, que será reservado ao orgulho de ser um homem que gosta de mulher e vice-versa. Nada mais falta.

O emocionante é que São Paulo fica apta para outros debates igualmente importantes e onipresentes, como o beijo gay em novela das oito – essa conquista sociocultural que ainda nos falta, maior que o Oscar, maior que o Nobel.

Sobretudo, São Paulo poderá tratar da questão que realmente me comove no Brasil: a gritante falta de roupa para lavar nos Legislativos.

No país com que sonho, todo parlamentar teria uma trouxa de roupa para lavar, enviada por  eleitores. Gosto da ideia de que seja semanal. Ao receber a roupa suja, o político conversaria com sua base eleitoral sobre os projetos que encaminhou ou pretende encaminhar ao plenário. Semana após semana, com as roupas de molho no tanque, o eleitor acompanharia o mandato do homem que elegeu como representante e poderia lhe dizer como sua vida melhorou com a ação do legislador.

Em tempo: não conheço um único hétero paulistano orgulhoso do dia criado por Dom Apolinário. Mas aguardo ansioso as fotos da passeata do terceiro domingo de dezembro.