22.9.11


Rock, ou a religião que se perdeu


[No Destak]


Vai-se um R.E.M., vem um Rock in Rio, e a certeza de que envelheci se aguça. Ir a um festival parece-me hoje sacrifício enorme – que há dez anos, tirava-se de letra. E a verdade é que cada vez menos bandas novas me tocam.

Outro dia, confessei minha falta de entusiasmo com as bandas novas a amigos que celebravam o novo momento. Para eles, finalmente o rock estava livre do culto ao rockstar;  temos obras cada vez mais “abertas”e assim não somos obrigados a levar 10 canções para ouvir a única de que gostamos (é só baixá-la). E ainda se pode escolher como ouvi-las: citavam-me o último do Radiohead, que diziam ser ainda melhor na encarnação remixada. Calei-me: nunca me vi prisioneiro de rockstar, nem achava que uma obra “fechada” fosse um mal em si. Havia, sim, discos ruins e discos bons.

Sinto falta de quando o rock, em qualquer língua, tinha mais a dizer. Não exatamente uma mensagem cantada, mas uma postura contestadora de qualquer coisa. Via no rock uma estranha forma de arte, apoiada no trio gravação-show-vida. Por vida, entenda-se tudo que fosse captado pela mídia: declarações, protestos, escândalos, tudo contribuía para reforçar ou até negar a obra. Eles viviam mais intensamente que nós, e isso era também uma forma de arte poderosa – que nos alterava a alma.

Hoje, as bandas não contestam. Ao contrário, elas endossam a vida como ela já está, além de algumas marcas. Propõem quase nada além de dançar. Nada errado em si, mas é como se o rock tivesse selado um pacto de não-agressão com o mundo – e o rock sempre foi perigoso, em qualquer década. Será que o surgimento da internet decretou o fim do tédio, o inimigo comum que o rock sempre enfrentou? Se sempre temos com o que nos distrairmos assim que nos conectamos,  contestar já era. Não há mais inimigos, e lugar de sonhar é na cama. 

Ser legal  não era suficiente para uma banda quando havia gravadoras. Triste é ver que a facilidade de produzir e divulgar rock não promoveu ambições autorais, ou vontade de dar ao público em doses generosas o fascínio dos velhos concertos de rock, que injetavam endorfina. O que tenho visto, salvo raras exceções, são grupos cool , atrás de um ou outro “hit”. Os heróis e os mitos da religião que se perdeu deram lugar a pessoas a quem não precisamos gastar muito de nossas atenções. Elas fazem shows porque gostam; afinal, se fosse apenas um disco tocando, o impacto em nossas vidas seria rigorosamente o mesmo.

1.9.11

 A ARTE DE DESTRUIR CASTELOS DE AREIA

[nesta sexta, no Destak]

Era um dos desafios que me impunha quando era só um garoto de sete anos que passava férias de verão na casa de praia do meu avô, em Cabo Frio: construía um castelo de areia ali, mais ou menos perto do mar, e torcia para que, no dia seguinte, eu o encontrasse ali de pé, mais ou menos no mesmo estado.

Ficávamos nessa época muitas horas na praia – nos anos 80, a camada de ozônio não era um tema, nem o câncer de pele um pânico. Então o castelo era construído quase quando o sol se punha. Voltávamos ainda pela manhã e, para minha diária decepção, o castelo nunca ficava para o dia seguinte. Na minha cabeça de criança, era alguém que vinha entre a noite e a manhã e dilapidava meu palacete.

Acreditando que um dia eu teria sorte e essa pessoa pouparia o edifício, passei a construir castelos maiores e mais fortes, com bases realmente largas; às vezes não era nem castelo, mas apenas uma montanha teimosa e grosseira diante do oceano. Usava as pernas e os pés para mover a maior quantidade de areia possível, até que certa vez, com algumas horas de obstinação, consegui uma montanha que era do meu tamanho.

“Agora vai”, pensei. No dia seguinte, cataploft.

Irritado, desabafei com algum adulto – meu avô, meu tio, meu pai? Não me recordo – que me explicou por alto o movimento das marés. Enfim, o mar sempre levaria o castelo embora. Aquilo não era negociável. Aquela nova verdade provocou minha revolta de menos de um metro e quarenta, e eu decretei que nunca mais faria nada na areia.

Não sustentei a decisão por muito tempo. Eram tantas horas na praia que, em algum momento, a coisa mais legal que se podia fazer com primos e amigos era erguer um castelo. Sempre tentávamos algo diferente – um novo ornamento, mais ou menos torres, e até cavernas que pudessem abrigar nossos bonecos e deixar as aventuras deles mais arriscadas.

Descobri assim outra felicidade. Quando a família se retirava da praia, a última brincadeira era correr para a água e atravessar o castelo antes que o mar o levasse, demolindo-o como um gigante, numa sensação de onipotência que só décadas depois fui entender por completo. Muitos desejos são lindos de serem realizados; outros, porém, só servem para nos libertar – justamente quando desistimos deles.