23.12.10

CRÔNICA DE UM DISTANTE NATAL
(Publicada no 24.dez.2010, no Destak Rio, SP e DF)


O ano de 2001 havia sido particularmente ruim, e aquele Natal apenas confirmava isso. Perdas na família, no coração e no emprego pareciam incontornáveis. Mecanicamente, comi a ceia da minha tia-avó e fui levar a melancolia para passear. Beijei os parentes, saí sozinho pelo edifício e tomei a rua, tentando decidir se iria encarar alguma festa – amigos me chamavam para lá e para cá. 

O que lembro, dobrando a esquina da Gomes Carneiro com a Visconde de Pirajá, em Ipanema, é de ver seis mendigos, amontoados na calçada, comendo restos de ceias. Eram cinco homens e uma mulher – hoje chamaríamos de sem-teto, mas ali eram só mendigos animados. 

De repente, a mulher achou entre seus embrulhos uma velha câmera fotográfica, que parecia ser daquelas compridas, descartáveis. Empolgada, ordenou a todos que posassem diante da máquina. Que provavelmente não tinha filme. Nem pilha. E, mesmo que tivesse tudo, nada me garantiria que tal foto seria revelada – ou que tal situação mereceria ser revisitada.

Parei diante daquela cena, sem palavras. Notando que eu prestava atenção neles, um dos sem-teto acenou para mim no meio da pose e gritou um “Feliz Natal”. Respondi no susto, confesso. Com um tímido e nada convicente “Pra você também”.

Não sei onde fui parar depois, ou se fui para casa dormir. Não me lembro de mais nada.

*****

Sempre resisti à tentação de escrever sobre esse episódio. Eu o respeito muito; nunca achei que ele me pertencesse tanto a ponto de poder interpretá-lo em definitivo. Toda vez que o Natal chega, penso novamente sobre o que vi, ouvi e disse, e às vezes conto aos amigos, sem concluir muito. Gosto de deixar o ouvinte à vontade para interpretar esse meu auto pessoal como quiser, sob maior ou menor efeito dos simbolismos desses dezembros profundos.

Ouço cada conclusão que me apresentam e gosto de muitas, mas são sempre reduções; nenhuma imprime em papel o encantamento que me arrebatou. Hoje, sem medo, posso finalmente desistir de querer explicar o que vi, porque sei que falharei sempre. Nunca estarei preparado. 

Ali, não fui mais que uma câmera.


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31.8.10

MACHISMO PARA INICIANTES


Fui acusado de machismo. É até engraçado; a denúncia soa anacrônica como soaria a você, leitora, se de repente alguém, em tom difamatório, apontasse o dedo para você e lhe dissesse: "Eu sei que você não é mais virgem!". É daqueles crimes que dão vontade de confessar na hora, simplesmente porque foram bem arquitetados, bem executados e não deixam nenhum rastro de culpa. A impunidade é terrível nessas horas: é como se não concedessem o reconhecimento devido.

A "condenação"  veio, é verdade, por uma besteira: algumas pessoas leram o meu último texto na Maria Filó e me consideraram "repetidor de preconceitos em relação à mulher". Apenas descrevi como um homem decodifica imagens que se cristalizaram no mundo da Playboy. E sinceramente, pouco me importa se Larissa Riquelme será uma mãe exemplar e uma avó dedicada, ou se essa na verdade é Cleo Pires, ou se tanto faz, ou se N.R.A. Eu falava do que elas me permitiram fantasiar naquele contexto de coelhinhas de celuloide a que elas voluntariamente se submeteram com cachê razoável; o resto vai por conta do humor de quem lê.

Ok, eu sou um tipo de machista, sim. Mas agora vamos definir os limites desse machismo civilizado, democrático e pluralista que eu advogo, antes que vocês me enquadrem num fantasma de décadas e séculos que não vivi, demonizado por bibliografias feministas das quais muitas de vocês nem passaram perto. O curioso é que creio que jamais conseguirei ser tão machista quanto uma mulher consegue ser.

Sou um conservador utópico, porque não se acredita no amor sem um quê de conservadorismo e outro de utopia; afinal, não se trata da ideia mais nova do mundo, nem da meta mais palpável. O amor pressupõe uma questão de pertinência (que se deriva do verbo "pertencer"). Mas pertencer a longo prazo está datado, diante da videolocadora humana que se instalou após as conquistas de liberdades sexuais para ambos os sexos.

(Se eu sou contra isso tudo? Não, afinal de contas, é necessário entretenimento de vez em quando. E um traço do conservadorismo utópico é, vez por outra, admitir que toda essa busca é utópica demais e partir às 2h da manhã para o pragmatismo lúdico, diante de alguém razoavelmente irresistível. E lembre-se: sempre são 2h da manhã em algum lugar do mundo. Você foi avisada.)

Sou também partidário de um machismo que é resposta ao feminismo, porque não somos culpados de tudo. O machismo que advogo entende que a mulher dirija, vote e tome a iniciativa da conquista, mas que se mantenham substancialmente diferentes. O objetivo-chave desse machismo descendente do cavalheirismo é lembrar às mulheres como é gostoso ser diferente de nós, no maior número possível de significados dessa diferença.

E nós trataremos vocês, sim, como seres mais frágeis, não porque vocês são menos capazes, mas para que vocês exerçam o sagrado direito de serem mais frágeis do que nós. Porque vocês têm, além das guerras que aprenderam conosco, uma outra que nós não temos, que exige mais força do que qualquer outra que jamais enfrentamos: a da conquista da beleza, como arma pelo amor, como definição da feminilidade, como estandarte do sonho que a menina em cada uma de vocês nunca abandona: o de encantar. Não adianta, vocês se formam, criam independência, emancipam-se, mas adoram ser lembradas de que são, também, um rostinho bonito.

E damos essa colher de chá pelo simples fato de que gostamos de nos encantar. Sim, não fazemos nada que não seja do interesse da classe. Lamento informar de novo, mas nem eu sou, nem meus bróderes são, o seu amigo gay.

10.3.10

NOVA EMPREITADA: O INFILTRADO

Agora, sou um dos blogueiros na grife feminina Maria Filó. O primeiro post se chama "Roubos e Furtos"
http://www.mariafilo.com.br/blog/?p=239

5.3.10

E ELA SE LEVANTOU PARA BUSCAR ÁGUA
(publicada no Destak)


Os lençóis ainda estavam quentes, e eu ainda não havia notado os fios de cabelo que também estavam deitados na cama conosco quando ela se levantou e foi até a cozinha para buscar água.


Num lance de sorte, virei o rosto e ainda pude ver suas costas nuas, suas pernas olímpicas e o ritmo binário de suas nádegas em marcha, como se buscar um copo d'água fosse uma missão humanitária entregue a alguém que preza o estrito cumprimento do dever.


Sim, ela caminhava até a cozinha como um soldado vitorioso, que deixava para trás de si um inimigo vencido. Como uma enfermeira que conhece as obrigações de seu uniforme branco e se apega a elas mais do que ao sentimento de empatia pelo sofrimento alheio.


Ela também pega água como uma gueixa.


Assim que ela sumiu no corredor, tombei a cabeça para o outro lado, onde a parede branca metaforizava a impossibilidade de outras belezas naquele mesmo quarto depois daquela epifania maior.


A televisão calada, o aparelho de som em silêncio, nenhum pássaro na janela, o resto do mundo respirava em raros ruídos, como as plateias de teatro que tossem para dentro no meio de uma cena crucial.


E sua ida me deu consciência de um vazio mais fundo que todas as privações físicas já sentidas. Nenhuma fome, nenhum calor ou frio na história da minha humanidade mereceram mais autoanálise do que a secura despertada pelo momento em que ela se levantou.


E o atrito da língua no palato movimentava um ar seco como Brasília. Eu tinha os olhos úmidos de um largo cansaço, e o suor dos lençóis se havia evaporado, soprando na pele a necessidade de recorrer à água que viria, como uma bênção, da geladeira dela.


Tentei imaginar de onde viria a água. Poderia ser uma mineral sem gás de 1,5 litro, como as que bebo do gargalo quando jogo bola. Ou uma das bojudas garrafas com tampa de plástico e abas retráteis que imitam as dos bules. Ou das de vidro verde elegante e opaco.


Decidi que vem da moringa de alumínio que a minha avó materna tinha, com o metal suado pelo frescor potável que prometia às gargantas mais áridas.


E, quando ela voltar, nua, trazendo aquele grande copo d'água nas suas mãos pequenas - nas quais ele ganhará a forma de um enorme balde transparente de vida -, o milagre efêmero da satisfação humana se recriará. Até que seja preciso outro gole dela.
AO CARNAVAL, UM MERECIDO EPÍLOGO
(publicada no Destak em 19.fev.2010)

Vestido como um dos 300 de Esparta, fui um dos muitos heróis do Carnaval mais quente dos últimos 50 anos no Rio. Com pés revestidos de esparadrapo e gaze para aguentar a sandália grega, caminhei por vários blocos, respeitei tradições e vi as novas serem criadas. Testemunhei a folia e posso decretar que, sim, a Belle Époque foi restaurada no Rio a partir de 2010.

Seduzi-me no Bloco das Trepadeiras, moças de finíssimo trato revestidas de galhos e folhas verdes, rebatizadas como Maria Sem-Vergonha, Comigo Ninguém Phode e Costela de Adão, entre outras. Vi Pedro Ladeira, candidato a candidato em 2010, homem que, de terno e gravata, ignorou a sensação térmica cinquentenária e distribuiu programa de governo que criminalizava o toco - ou seja, o fora - durante o Carnaval. Louco.

Vi escritores consagrados vestidos de empregada, ostentando bigodes freddie-mercuryanos, varrendo de si os fardos do dia a dia e criando personagens e cenários para o futuro melhor que a cidade merece deles.

Sei que Paulinho da Viola estava incógnito de árabe no formidável Sassaricando, na Glória, e mais não digo, porque Paulinho é assim, de imensa elegância e discrição.

Circulei no Boitatá, segui o Boi-Tolo e me impressionei com a fartura de carnes e carniças no baile de máscaras a céu aberto. Estar sem fantasia na Praça 15 e na 1º de Março era inafiançável até para os mais paulistas. Ali, gritava-se a plenos pulmões, parodiando Obina, que "O Rio é melhor que Salvador" - rivalidade que se instala por vias dúbias, como reação ao Choque de Ordem nos blocos (que, diga-se, foi saudável).

Subi o Volta, Alice! e desci a tempo de ver o Epa Rei atravessar ruas de pedestres no Centro, do Real Gabinete Português ao Consulado da Suécia, sem precisar comunicar à prefeitura. Aplaudi a ideia de usarmos o anfiteatro do Buraco do Lume e escalarmos depois os degraus da Alerj, triunfantes e espontâneos. Lá, soube por alto que Arruda ainda se vestia de Irmão Metralha numa jaula do DF.

Do sambódromo - juro! -, só soube na apuração, porque sou um Paulo Barros de mim mesmo.

Vi o Bagunça o Meu Coreto, o Último Gole e honrei os blocos de praça, em que crianças e adultos não precisam ser separados. Naqueles espaços, virei menino.

Vi a Orquestra Voadora varrer o parque do Flamengo sob sol inclemente e escassez de líquidos. Lembrou o sofrido Círio de Nazaré, mas soube que posteriormente veio a Era de Aquário sob as árvores de Burle Marx.

E com memórias que guardarei na retina, desarmei meu espartano torto (um rei Leônidas da Silva?) e fui trabalhar na quarta, depois do Me Beija que Sou Cineasta, certo de que jamais haverá Carnaval como este.

22.1.10

QUANDO O MERCADO SEXUAL INCOMODA?

"Combatidos", prédios do Rio com atividades ligadas ao sexo apenas pagam o preço de suas visibilidades

Depois que tapumes decorativos esconderam a boate Help até que ela se torne o novo Museu da Imagem e do Som em parceria com a Fundação Roberto Marinho (leia-se Organizações Globo), o Estado do Rio já tem novo projeto cultural para barrar safadezas na ex-cidade mais sexual do Brasil, a outrora Rio Babilônia. Para criar a Sala Pixinguinha, deverá expropriar o Cine Íris – processo que, a julgar pelo da Help, deve levar um ano.

Trata-se do cinema mais antigo da cidade, que hoje exibe filmes pornôs prestigiados por trabalhadores do Centro e, de vez em quando, sedia festas alternativas.

Tanto a Help quanto o Íris acostumaram-se a ser pilares tradicionais do comportamento sexual da cidade. Nada no Centro é tão decadente e glamouroso a um só tempo como o centenário Íris e seus cartazes honestíssimos que levam office-boys e executivos a uma "aliviada". Ninguém entra lá só pela arquitetura art-nouveau.

Já a Help, na avenida Atlântica, em Copacabana, era o mais famoso ponto de turismo sexual do país, com a diferença de que era tudo, menos um ponto criminalizável. A boate atraía turistas de muitos países porque as prostitutas (nitidamente maiores de idade) iam para lá dançar (e obviamente fisgar clientes), mas a saliência era feita nas suas aforas. Os seguranças eram inclementes com amassos incisivos. E elas pagavam para entrar, como qualquer pessoa. Ou seja, o turismo sexual que é tolerado em qualquer lugar do mundo, e não o mercado pedófilo.

Transformar esses prédios hedonistas em áreas de interesse cultural é emblemático. Mas do quê?

Adoraria que o debate fosse "o governo Cabral se empenha em uma cruzada moralista em nome dos bons costumes"; no mínimo haveria a chance de intervenções em estabelecimentos famosos que exploram a prostituição usando alvarás disfarçados – o que perfaz dois crimes. Seria curioso ver o secretário de Segurança e os chefes das polícias numa empreitada digna de Os Intocáveis. Mas não é exatamente essa a estratégia.

Cine Íris e Help pagam o preço de suas visibilidades; o cinema, pelo caráter de patrimônio tombado pelo Estado; a boate, por sua preciosa localização litorânea. Ambos podem ser renomeados com ajuda de fundações parceiras, que se interessam pouco por outras regiões da cidade e sempre terão prioridade na hora de usar emprestado as instalações "recuperadas".

Vamos ver que fundação vai cuidar do Cine Íris.

15.1.10

Minha coluna de hoje no DESTAK.

FICÇÃO SUBTERRÂNEA Nº 2 - O ZAPPING

Detestamos ficar em silêncio, ainda mais com gente próxima, como no metrô. O problema é o que ouvir




Entro no metrô. Lotado. O ar-condicionado não funciona bem, e as pessoas começam a falar mais alto. Talvez as altas temperaturas realmente sejam as responsáveis por nosso comportamento mais ruidoso. Alguém deve ter teorizado sobre isso. Não sei quem.

Assim, é possível participar de conversas, mesmo para quem não tenha interlocutores. Viro o rosto para a direita. Uma senhora se abana, sentada nos assentos para idosos. Comenta sobre o calor. "Isso aqui tá um forno, meu Deus, nunca vi isso, Jesus Cristo." É um hit a conversa sobre o clima, ainda mais no verão. Acho que é talvez o principal traço da espontaneidade latina. Detestamos ficar em silêncio, queremos proximidade, queremos concordar sinfonicamente uns com os outros, principalmente com os que não conhecemos. E aí, desanda-se a falar daquilo que merece um desabafo. É uma conversa cansativa, então zapeio.

Meus ouvidos agora apontam dois rapazes em camisas ensopadas de suor. Tentaram conversar sobre futebol, mas as contratações de verão, pelo que pude perceber, não os animaram. Até que um resolve se arriscar num terreno que não parece dominar.

"E aquela parada que deu no Haiti, hein? Sinistro, tudo acabou lá naquele lado." Seu colega, que se pendurava na barra do teto do vagão, olhando para o chão, solta um palavrão de desabafo. Mas, como se sente impelido a falar alguma coisa sobre o sofrimento de milhares...

"É fogo. Deus não alivia a África mesmo..." Desisto de acompanhar a conversa até que os rapazes situem melhor o Haiti dentro de suas prioridades e geografias. A composição, que estava parada, fecha as portas no exato momento em que uma moça belíssima aterrissava das escadas com pressa - e aqui eu concedo, leitor e leitora, que vocês descrevam mentalmente como seria essa pessoa belíssima. Cansada e frustrada, ela se curva e vira a cabeça, bem na minha frente.

Abro os braços como quem lamenta, não só por ela, mas também pelo nosso vagão, que iria ficar mais agradável - afinal, há mulheres que são como brisas. Ela me sorri, sem jeito, e vira a cabeça. Na camiseta, lê-se, em inglês, a frase "O amor é um milagre", entre grafismos coloridos num fundo branco.

Foi a melhor conversa da viagem. No resto, entre calores, terremotos e empurrões, contribuí com o silêncio e desliguei os ouvidos. Nada mais era comigo.

6.1.10

Setlist de A PAIXÃO SEGUNDO CABARET

Prólogo
1.
A Paixão segundo Cabaret - o jovem Dontlov, após seguidas desilusões, jura se negar ao amor.

Ária

2. O Amor de Ninguém - Uma canção que apresenta o personagem já com cerca de 40 anos, e descreve o salto dele no tempo, seduzindo e deixando-se seduzir sem se apegar, com resignação sobre sua falta de talento para o compromisso. Até que surge uma mulher da qual ele não poderá escapar.

AS 10 ETAPAS DA PAIXÃO TRÁGICA
3. Animal, ou a Atração
4. Um Dia no Paraíso, ou a Obsessão
5. Bela e Vulgar, ou a Concessão
6. Crianças, ou a Transcendência
7. Eu Não Quero Mais Ouvir, ou a Decepção
8. Não É Mulher pra Você, ou o Arrependimento
9. Dentro de Você, ou o Rancor (com participação de Ney Matogrosso)
10. Glória, ou a Desistência
11. Já é Tarde, ou a Depuração
12. Nada Vai Ser Amor, ou a Terceirização

Epílogo
13. A Persistência da Memória


Essas são as pretensões. Fiquem à vontade para esquecê-las.