POR QUE ALL AND EVERYONE, DE PJ HARVEY, É UM MUSICAÇO
Há certos momentos em que o poeta (ou, para usar uma palavra menos hã, "cafona", um letrista), parece simplesmente tomado de algum espírito. Poetas e profetas já foram vistos com um certo parentesco. "Vate" é uma palavra que pode ser sinônimo das duas ocupações.
Há certos momentos em que o poeta (ou, para usar uma palavra menos hã, "cafona", um letrista), parece simplesmente tomado de algum espírito. Poetas e profetas já foram vistos com um certo parentesco. "Vate" é uma palavra que pode ser sinônimo das duas ocupações.
"All and Everyone", faixa 5 do disco "Let England Shake", de PJ Harvey, cantora de cuja obra nunca me aproximei, é desses lampejos. O tema que ela aborda é a batalha de Gallipoli (ou Dardanelles), em 1915, Primeira Guerra Mundial, em que os turcos resistiram a um cerco de aliados ingleses e franceses, que tentavam tomar Constantinopla sob um sol inclemente de verão do Norte. Na soma de mortos dos dois lados, a história conta algo em torno de 392 mil. Mas, fora alguns topônimos citados na canção, como Bolton's Ridge, você não precisa se preocupar com isso.
É uma canção apocalíptica. PJ Harvey anuncia, como num despertar, que "a Morte estava estava em todos os lugares", sustentada por uma harmonia tocada em ritmo quase marcial. É um terror praticamente visual, dada a tensão nos acordes e o tom hipnótico com que PJ canta. Soa como um Cassandra, anunciando a queda iminente de Troia nas visões que teve durante o sono.
São imagens raras, inacreditáveis para a música pop, e assombrosas mesmo quando avaliadas sem a melodia, e ainda quando traduzidas.
"Quando você enrolava um fumo,
Ou contava uma piada,
Ela (A Morte) estava na gargalhada
E na água potável".
"A Morte se pendurava na fumaça e se agarrava
Aos 400 acres de uma inútil orla.
Um banco de terra pingava morte
agora, e agora e agora."
E, por fim, meu dístico preferido:
"A Morte estava no Sol que nos mirava,
fixando seus olhos em todos."
Não é coisa fácil, e sustenta-se por si. Com o arranjo econômico, essa letra nos põe diante do abismo, num crescendo de medo. É uma canção dramática, cinematográfica, extraordinária, com uma incrível divisão de sílabas. Reparem no impacto da antecipação da palavra negritada.
"Death was in the ancient fortress,
shelled by a million bullets
from gunners, waiting in the copses"
E ainda usa um surpreendente recurso de quebra de ritmo, que parece abrir fogo contra nossos ouvidos neste momento; "bank" quase vira "bang".
"Death hung in the smoke and clung
to 400 acres of useless beachfront.
A bank of red earth, dripping down death
now, and now, and now"
(Para nós que falamos português e entendemos o inglês como uma língua universal, não deixo de pensar que certas frases só poderão ser aceitas em inglês. Em português, estaríamos diante da grosseira visão que PJ nos proporciona e não poderíamos encará-la. Pense num artista nacional que pudesse cantar esses versos sem soar caricato ou impostor. Às vezes, a minha sensação é que a canção em português do Brasil não tem salvo-conduto para adentrar certos terrenos, ou ainda não chegou alguém com credibilidade suficiente para alcançá-los.)
Mas vai além. Leio esses versos de PJ Harvey e não consigo deixar de relacioná-los com a Líbia e no tsunami japonês, para citar duas orlas que vieram a sangrar recentemente. É nesses lances do Acaso que a poesia fica ainda mais impressionante: quando profetiza. Elimine-se o cunho histórico inglês que Polly Jean quis dar ao seu disco e mergulhe-se nessa marcha, em que o sol impossível é simbolizado no momento de relativa tranquilidade, como se a música exibisse um cansaço em seu caminhar corajoso ao dizer:
"As we, advancing in the sun".
Um comentário:
Nossa que bela canção, adorei saber sobre ela.
E por falar em Galipoli, tem o filme com este nome, (bem antigo) com o Mel gibson que é maravilhoso e tem um final inesperado.
Grande abraço!
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