
Foto: Agência Brasil
A tragédia de Santa Maria desperta dúvidas. Quantas casas noturnas são legalizadas? Quantas não são porque a fiscalização corrupta não lhes permite? Qual é o significado de um alvará, se pode ser obtido via suborno ou negado até haver suborno? É certo a casa usar comanda como cárcere privado? E por aí vamos.
A discussão que me interessa hoje, no entanto, é a crítica à cobertura jornalística do fato: não foram poucos os veículos sérios acusados de fazer sensacionalismo com imagens duras e desabafos emocionados, em vez de operar “jornalismo estritamente investigativo”. Exageros são condenáveis, mas confesso um incômodo com a enorme prevenção à emoção.
Embora se faça notícia hoje em tempo real, jornalismo investigativo sério ainda exige tempo. Apurar culpas, conferir as leis e traduzir as versões para o receptor médio não é um conjunto que se produz nos minutos posteriores a um horror que vira interesse público imediato. Equilibrar a demanda por notícias instantâneas para que não se menospreze a dimensão do fato nem se sonegue informação ao receptor de TV/rádio/ internet com a execução do esforço jornalístico de fôlego é um dos maiores desafios de qualquer veículo.
No entanto, em paralelo às necessárias investigações sobre as causas – que sim, estão sendo noticiadas – sempre haverá espaço para seus efeitos. Na dimensão dum massacre, o jornalismo não tem por que ser um mero enfileirar de dados, como um prontuário de delegacia, ou impassível e descritivo como um poeta parnasiano diante de um vaso chinês. Santa Maria foi perturbadoramente real.
É preciso contar as histórias para que os 236 mortos (mais um morreu na madrugada desta sexta) ganhem rostos humanos, reconhecíveis a qualquer um como iguais, a fim de que o país não se sinta tão distante de Santa Maria quanto se sente, por exemplo, da matança numérica na Síria. A boate Kiss foi o último capítulo de jovens ceifados por estupidez genuinamente brasileira. As vidas esfaceladas não são apenas as dos mortos, mas também de parentes e de cada mãe que se fará as perguntas do 1º parágrafo quando seu filho sair à noite.
Só numa cultura esterilizante, viciada em aparência de felicidade e sobriedade – que pode ser aguda apatia –, a foto do “Estadão” da última segunda-feira - uma mãe ajoelhada e inconsolável que abraça um caixão - pode ser tida como de mau gosto. Há pessoas que têm o que dizer, e dar voz à dor é homenageá-las. Relatar que os celulares dos mortos tocaram é empatia com policiais e bombeiros. É humano e biográfico, como o mais vivo jornalismo.
Seria lindo se todo repórter soubesse como perguntar o que sente um pai que chora – "É possível dizer alguma coisa em meio a tanto sofrimento?" ainda me parece ser a saída mais correta. Mais fácil, porém, será aceitarmos que nem todo mundo é inoxidável numa cena de horror. Erros ocorrem, exageros merecem crítica, e a exposição de corpos em material jornalístico sempre será tema para as mais dissonantes opiniões.
Mas defender que o microfone e a câmera nem se dirijam ao enlutado é um falso respeito ao leitor/telespectador. Certas dores, se quiserem, têm que sair no jornal.