E ELA SE LEVANTOU PARA BUSCAR ÁGUA
(publicada no Destak)
Os lençóis ainda estavam quentes, e eu ainda não havia notado os fios de cabelo que também estavam deitados na cama conosco quando ela se levantou e foi até a cozinha para buscar água.
Num lance de sorte, virei o rosto e ainda pude ver suas costas nuas, suas pernas olímpicas e o ritmo binário de suas nádegas em marcha, como se buscar um copo d'água fosse uma missão humanitária entregue a alguém que preza o estrito cumprimento do dever.
Sim, ela caminhava até a cozinha como um soldado vitorioso, que deixava para trás de si um inimigo vencido. Como uma enfermeira que conhece as obrigações de seu uniforme branco e se apega a elas mais do que ao sentimento de empatia pelo sofrimento alheio.
Ela também pega água como uma gueixa.
Assim que ela sumiu no corredor, tombei a cabeça para o outro lado, onde a parede branca metaforizava a impossibilidade de outras belezas naquele mesmo quarto depois daquela epifania maior.
A televisão calada, o aparelho de som em silêncio, nenhum pássaro na janela, o resto do mundo respirava em raros ruídos, como as plateias de teatro que tossem para dentro no meio de uma cena crucial.
E sua ida me deu consciência de um vazio mais fundo que todas as privações físicas já sentidas. Nenhuma fome, nenhum calor ou frio na história da minha humanidade mereceram mais autoanálise do que a secura despertada pelo momento em que ela se levantou.
E o atrito da língua no palato movimentava um ar seco como Brasília. Eu tinha os olhos úmidos de um largo cansaço, e o suor dos lençóis se havia evaporado, soprando na pele a necessidade de recorrer à água que viria, como uma bênção, da geladeira dela.
Tentei imaginar de onde viria a água. Poderia ser uma mineral sem gás de 1,5 litro, como as que bebo do gargalo quando jogo bola. Ou uma das bojudas garrafas com tampa de plástico e abas retráteis que imitam as dos bules. Ou das de vidro verde elegante e opaco.
Decidi que vem da moringa de alumínio que a minha avó materna tinha, com o metal suado pelo frescor potável que prometia às gargantas mais áridas.
E, quando ela voltar, nua, trazendo aquele grande copo d'água nas suas mãos pequenas - nas quais ele ganhará a forma de um enorme balde transparente de vida -, o milagre efêmero da satisfação humana se recriará. Até que seja preciso outro gole dela.
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