PEDRO FRANÇA
Certa vez desenvolvi um heterônimo, um bon-vivant que, diante do bom dinheiro herdado dos pais, se especializou em não fazer nada de sua vida. Do alto de sua inércia, o que lhe garante ausência de erros cometidos fora as omissões, ele observa os absurdos à sua volta e, talvez por isso, se pergunte se ainda valeria a pena fazer alguma coisa.
Escreveu três poemas, num período de 38 anos de vida. E cessou, porque não lhe parecia bem começar uma extensa obra. Com vocês, Pedro França.
Poema de Ano-Novo
O ano novo está lá fora. Aqui, tudo é velho,
E frio, e fútil, e calmo, e desesperançoso.
Não há motivos pra vestir-me branco.
Não tenho essa pureza,
Não quero tanta sorte,
Nem sei se sou capaz de ser ingênuo a ponto de crer nessas tolices,
Embora fosse cômodo querê-las
Não quero esse ano-novo. Não quero.
Porque desperdicei tantos dias, porque joguei fora tantas horas
E não acho justo que eu possa ganhar outras,
Como uma criança que quebra todos os brinquedos que ganha.
Não quero esse ano-novo. Não quero.
Sei que ele me trará mais perdas do que ganhos,
Sei que a juventude vai se tornar um retrato em minha estante,
E eu que fui moço e fúria e brilho
Me aproximo a passos largos da realidade de ser um nada
Que se revigora a cada um dos anos-novos.
Eles estão lá fora, com seus champagnes, suas cidras, seus despachos praieiros,
Suas resoluções e sua desfaçatez.
Escolhem esse dia para serem puros, terem sonhos e sorrir.
Precisam de mais um ano para nos outros dias
Poderem se emputecer em paz; o ano-novo é viciante.
Por conta de uma convenção temporal, convenciona-se que seremos felizes.
Que podemos ter sonhos, e crenças e abraços agendados.
Não, eu não quero esse ano-novo. Quero alguns anos de novo.
Quero refazer, reviver minhas vitórias,
Curtir os melhores momentos, ver a minha reprise na Sessão da Tarde e,
Se puder,
Ajudar o garoto que fui a tomar aquelas decisões que me ferraram tantos anos.
E que me reforçam a crença de que não, eu não preciso do ano-novo.
Quero viver sem anos pra contar, quero viver cem anos e perder a conta.
E não ver tudo passar.
Não. Dessa vez, eu não vou com vocês para o ano-novo.
Vou ficar mesmo neste aqui.
Quase Ode
Moro em Ipanema, quase à beira-mar.
Nem tão quase, porque, da minha casa,
Inda devo percorrer cinco andares, dar bom-dia ao meu porteiro
E atravessar os dois quarteirões que me separam
Do risco de ser atropelado na Vieira Souto
Por uma van cujo trajeto inclui obstruir a passagem dos carros,
Irritando os motoristas,
Exatamente como fazem os ônibus,
Que normalmente irritam também seus passageiros.
Se eu não for vítima da irritação alheia,
Quase chego à praia. Sim, quase,
Porque não gosto de praia. Prefiro caminhar no calçadão,
Que tem menos bundas à mostra que a areia,
Mas pelo menos faz a gente dar menos atenção
Às informações diárias sobre coliformes
Que a imprensa amigavelmente nos recorda.
Caminhando até o Leblon, quase emagreço.
Quase, porque, no caminho, há sempre tempo
De lembrar da vontade incessante de comer que eu trago
Como se fosse um etíope e sua fome.
Paro, como um sanduíche e me arrependo. Porque eu quase ia bem,
Mas eu já me acostumei a parar pelo caminho em meus projetos.
Que não foram poucos, nem eram tão difíceis,
Mas foram igualmente abandonados num segundo,
Como essa dieta imbecil.
“Tudo bem, sou um quase magro”, chego à conclusão.
E quase magros podem se dar ao direito de quase ir à praia,
Ficar no calçadão vendo as quase bundas
Enquanto quase se contaminam na imundície da praia, logo após
Quase terem morrido ao atravessar algumas ruas.
Alguém quase me olhou no meu passeio?
Não sei. Nesta vida que parece hesitar em ser vivida,
E nada chega a ser alguma coisa, deve ser natural
Que passem por mim e quase se apaixonem,
Ou pior, que quase não me vejam.
Volto pra casa, antes de me sentir quase cansado.
E quase vivo, quase morto,
Vou ligar a TV e me enganar um pouco mais,
Telefonar para um amigo e deixar que ele me diga:
“Calma, Pedro, não se mate.
Está quase tudo certo.”
Diante da Insânia
Ninguém espera de mim um ato de vandalismo.
Rebeldia zero. Estou terminantemente sob controle,
Acreditam eles. Em paz com meus dias,
Eles pensam. Sou a válvula de escape que eles têm
Pros absurdos de seus mundos.
Comigo podem ser loucos, pois confiam em meu equilíbrio.
E não me reconhecem sendo desarrazoado.
Quem um dia me viu nos meus arroubos?
Quem foi capaz me ver, tomado de fúria,
Pleno de razões doentias, com motivos
Para conquistar Roma sozinho, e derrotar quem sabe o próprio Satanás?
Não, eles nunca me viram no fogo da minha insanidade.
Eles não sabem que minhas mãos são tão capazes de atos monstruosos
Quanto as mãos deles mesmos.
Que sou capaz de arquitetar com precisão e executar com frieza
Toda a psicopatia da raça humana.
Eu também vim do lodo, do barro, do carbono, do amoníaco.
A mim também me coube o direito à alguma insânia.
Posso explodir, posso fugir, posso irresponsabilizar-me
De cada uma das minhas atitudes.
Ontem cortei a mão. Não me lembro como.
Não senti a dor que me fez sangrar o punho...
A cicatriz? Está ali, e eu a vejo, enquanto digito nervosamente
Cada tecla com a mão direita.
O efeito está ali, aparentemente sem causa,
Como tantos males, como tantos acasos,
Todos os acasos e coincidências capazes de convencer cada ser humano
De que o Destino brinca de lançar-nos infortúnios.
Eu não creio nos destinos, e talvez não creia na ferida. Posso crer na cicatriz
Porque ela está ali. E crendo nela,
Posso crer em tantas outras coisas que faço
Sem mínimos porquês, ou sem ter que recordá-los.
As coincidências precisam de motivos? Precisamos compreender tudo?
Precisamos ser assim tão científicos, ou místicos?
Eu posso aceitar o acaso, e tantas outras coisas que acontecem
Sem o menor sentido,
Como todas as formigas que simplesmente aceitaram quando as pisei
Na minha infância, ou como todas as baratas
Que morreram debaixo dos meus sapatos.
Não houve vontade planejada, não houve propósito. Houve a ação,
Assim como há a minha cicatriz, que surgiu espontânea,
E assim como acontecerão todas as outras instintividades dessa vida.
Não posso crer que tudo tem sentido. Senão me mato.
E eu sou equilibrado a ponto de manter-me equilibrado,
Escravo do meu bom senso,
Para que eles possam ser absurdos, desmedidos,
Desregrados, obtusos, estúpidos ou simplesmente
Indiferentes.
Eles precisam de mim para verem seus absurdos.
Para entenderem sua estupidez como algo errado,
Ou quem sabe aperfeiçoá-la,
Se estiverem mais certos
Do que eu.
Talvez haja um motivo no absurdo. Talvez haja propósito.
Talvez eu precise ser absurdo algum dia.
Não há os que se jogam das janelas? Os que matam por tão pouco?
Os que berram em casa diariamente com seus filhos?
Os que jogam lixo na casa dos vizinhos?
Os que se negam a dizer bom dia?
Os que refutam qualquer “obrigado”?
E aqueles pobres diabos que jamais acreditam
Quando uma boa alma lhes diz “eu-te-amo”?
Tanta gente absurda no mundo, e eu equilibrado...
O que estou fazendo? Estou sendo humano,
Em todas as possibilidades da minha humanidade?
E o que é o humano senão um animal feroz?
Estou sendo equilibrado por quê? E eu preciso desse porquê?
Talvez desse eu precise.
Eu tenho que acreditar nesse porquê, pois quem garante
Que eu possa um dia desequilibrar-me?
Se eu precisar ser absurdo, saberei sê-lo?
Ou estarei anestesiado nessa paz artificial que me dei
Sem ter motivos nem porquês?
Eu tenho alguma insanidade, eu posso estar entre vocês,
Eu sei disso.
Irmão, irmã, pai, mãe, minha hereditariedade de absurdos
Ainda vai honrá-los e deixá-los absurdamente
Orgulhosos. Porque eu desisto dessa paz.
Cansei do absurdo de ser tão equilibrado
No meio desses ocasionalmente loucos
Vivendo dias que não têm porquês.
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