26.12.01

Monólogo de um demônio

Protege-te de mim nas tuas preces,
Pois eu sou o demônio que te assiste,
Discretamente à sombra, e quem persiste
Em ser pior, bem mais do que mereces.

Nunca me viste. Não, não me conheces;
Minha virtude principal consiste
Em SER demônio. Um mal que não existe,
A crendice ancestral que desmereces.

E até quando não é do meu intento,
Ingenuamente segues tua sina
E às vezes minha porta vens bater.

É por isso que agora me apresento:
Já procuras sozinho uma ruína,
Nada mais há que eu tenha por fazer.

25.12.01

Recado ao meu biógrafo

Se eu me tornar um homem importante
Do tipo que merece biografia,
Não quero que se escreva fantasia
Do que vivi nem do que vem adiante.

Quero um texto fiel a cada instante,
Que não inspire tola simpatia,
Imparcial sobre tudo o que eu fazia,
Rigoroso e jamais mitificante.

Que se elogie só o que merecer,
E, com o perturbado que for ler,
Seja meu redator sempre mais franco.

Mas, quando for falar de Ana Maria,
Por tudo o que não fiz e o que faria,
Eu peço algumas páginas em branco.

21.12.01

Soneto da final
Unico grande amore
Di tanta, tanta gente
Che fai sospirà

Hino da AS Roma, clube italiano de futebol


Inda te amava quando fui sozinho
Ao estádio, nem um pouco esperançoso;
A tua ausência me mantém saudoso,
Mas não pude ignorar o burburinho

Da final. Era um público orgulhoso,
O som de um só ardor, um só carinho,
Ébrios de uma paixão que, como o vinho,
Faz esquecer da dor com fácil gozo.

Foi quando um desafortunado gol
Traiu a multidão e lhes roubou
De uma alegria os pensamentos doces.

E ao ver os prantos, me indagava a mente
Quanta dor sentiriam, se tu fosses
O único grande amor de tanta gente.

20.12.01

Soneto de uma estranha vocação

Nasci pra ser herói, virei palhaço.
À medida que fui ganhando idades,
Dentre todas as possibilidades
Aperfeiçoei-me na arte do fracasso.

Eu tinha esse talento do erro crasso,
De equívocos, enganos, leviandades.
Tentei voltar, mas vis fatalidades
Torceriam o acerto do meu passo.

Assim eu, por instinto, fiz a vida;
Com chutes que acertavam sempre as traves,
Cessando de escrever belos romances,

Por conta da virtude incompreendida
Manifesta de formas tão suaves:
Saber desperdiçar as grandes chances.

19.12.01

Curso Livre de Poesia e outros serviços

A partir de janeiro, oferecerei um Curso Livre de Poesia, envolvendo apreciação, criação e declamação de poemas. Os objetivos do curso serão:

- estudos sobre as poesias portuguesa e brasileira; formação de leitores;
- estímulo à composição poética; compreensão das formas fixas, versificação e estilística;
- desenvolvimento da arte declamatória; a poesia ao público.

Aulas semanais de 1h30 de duração. Mensalidade de R$ 50. Prazo de conclusão: indeterminado (sem diploma). Os interessados deverão entrar em contato comigo pelo e-mail marvio@skydome.net.

Também dou aulas particulares de português e literatura para alunos de ginásio, segundo grau, universitários e profissionais. Preço a combinar.

17.12.01

Aos meus braços*

Eu não creio num Deus de intervenções
Como bem sei que crês.
Se acreditasse, a Ele imploraria
Que em tua vida nunca interferisse.
Que não tocasse teu cabelo,
Deixando-te como és,
Porém, se Ele quisesse dar-te um rumo,
Que viesses aos meus braços.

Aos meus braços, Senhor
Aos meus braços.
Aos meus braços, Senhor
Aos meus braços.

Tampouco cria na existência de anjos
Como hoje penso, ao ver-te.
Se acreditasse, eu mesmo os juntaria
Pedindo que zelassem só por ti.
Dando uma vela a cada um
Pra ensolarar-te a via
Com graça e amor, conforme Cristo andava,
Guiando-te aos meus braços.

Aos meus braços, Senhor
Aos meus braços.
Aos meus braços, Senhor
Aos meus braços.

Porém no amor, querida, eu guardo crenças,
Como igualmente crês.
E tenho fé que exista alguma estrada
Que juntos poderemos caminhar.
Então, que acendam fortes velas
Por toda a tua vida,
Para que voltes sempre e mais e sempre...

...aos meus braços, Senhor
Aos meus braços.
Aos meus braços, Senhor
Aos meus braços.

*Tradução livre da canção Into my arms, de Nick Cave, lançada no álbum The Boatman's Call, de 1997, e gravada por Nick Cave and the Bad Seeds.

15.12.01

Pietà

Detalhe da Pietà, de Michelangelo. Basílica de São Pedro, Vaticano.

Estava morto o Cristo. Envolto em panos,
Sangrava ainda quando foi deposto.
Banhado em suor e lágrimas, seu rosto
Beijou Maria, diante dos romanos.

Passados 33 daqueles anos,
A mulher da qual Deus fez tanto gosto
Chorou a honra e o sofrimento imposto
Por dar seu filho à luz pelos humanos.

Ao fim de toda dor que tinha visto,
Por um momento se esqueceu do Cristo;
Quis seu menino e nunca mais deixá-lo.

E se inclinou para tirar do solo
A cabeça que trouxe junto ao colo
Como se inda pudesse amamentá-lo.

14.12.01

Soneto das distâncias

A paisagem serena em sua face
Inda enfeita as janelas do meu dia,
Sem que eu precise ver fotografia
Nem gastar tempo até que essa dor passe.

Senti-la perto é simples, eu diria
Que em sonho ela talvez me visitasse
Se num sono profundo eu me deitasse
Nas horas em que sei que ela dormia.

Tão próxima de mim quanto eu distante...
E a geometria plana não garante
Que entre nós dois calcule-se uma reta.

O que existe é uma linha sinuosa.
De medição difícil, trabalhosa,
E a estimativa nunca sai correta.
De Amor e Ódio

Amor, irmão siamês do ódio mal-visto,
Fui entregar à mão duma incerteza
Que, enquanto dou-lhe o bem, dá-me frieza,
E não parece se importar com isto.

Escravizado! Tido como presa!
As melhores razões logo despisto
Em prol duma maior, por quem existo,
Arraigada em minha profundeza.

Foi assim que eu, afeito às circunstâncias,
Do ódio ao amor quis encurtar distâncias
E quis odiá-la (com algum receio).

Fracassei. E hoje indago no meu canto:
Por que fui dedicar-lhe amor tão santo
Se quanto mais a amo mais me odeio?

7.12.01

Réquiem para 12 rosas

As rosas que mandei, sei que morreram,
Pois é o destino vil de toda rosa.
Nenhuma pôde em vida ser vaidosa;
Tão logo abriram, cedo faleceram.

As doze mensageiras se perderam
Na missão já sabida desastrosa.
Levaram um cartão, em simples prosa,
Cumpriram seu dever e feneceram.

Era preciso que elas fossem vê-la
Para que eu desaguasse esses amores
Tão represados no pensar em tê-la

Sem poder, arruinando-me nas dores,
Culpas de rosas mortas por querê-la
E um amor que não vale doze flores.

4.12.01

Soneto do bar e do tédio

Embriagado de um cansaço louco,
Eu vim buscar um pouso nesta mesa.
O que beber? Não tenho inda certeza,
Mas prometo pedir daqui a pouco.

Em meus bolsos eu trouxe qualquer troco
Que não me bastará para a proeza
De mais embriagar-me. "Esta dureza
Me preserva", concluo, dando um soco

(Levemente) na mesa, onde um cinzeiro,
Um par de pratos limpos e um saleiro
Me assistem numa noite de dezembro.

São horas só de tédio, interrompido
Quando indaga um garçom: "Foi atendido?"
E eu, confuso, respondo que não lembro...