29.12.11

UMA RETROSPECTIVA PESSOAL DE 2011

Elegeram o manifestante, do Egito a Wall Street, o homem do ano. Disseram que “Recanto”, o disco da Gal composto por Caetano Veloso, foi o melhor do ano. Afirmaram que o Brasil vai ultrapassar o Reino Unido na lista de maiores economias no mundo, a reboque da crise financeira que faz a Europa reduzir seu passo ao ritmo do cágado. Amy Winehouse, enfim, descansa. Steve Jobs também.


Ainda olho para trás e, não sei por quê, de tudo que marcou o ano no noticiário, o que mais me martela ainda é o massacre perpetrado por um maníaco na escola municipal de Realengo, zona oeste do RIo, no dia 7 de abril.  Parece ser o primeiro fato que me vem à mente quando tento me lembrar de tudo que aconteceu no mundo em 2011. Ali foram mortas 12 crianças.


Outras foram salvas pelo sargento Márcio Alves, da Polícia Militar, que não matou Wellington Menezes de Oliveira; com sangue frio, acertou-lhe uma bala no abdômen. Wellington sobreviveria, se não tivesse atirado contra sua própria cabeça em seguida.


Naquela dia, voltei diferente para casa. Tudo me parecia com um ar completamente diferente, irrespirável – o trabalho, a vida, a saúde mental, nada parecia ser um refúgio depois de um dia inteiro acompanhando aquele noticiário em que pareciam inúteis todos os esforços de compreender o trauma e tentar criar uma zona de conforto – seja apontando supostas culpas, seja imaginando prevenções.


Foi como se 2011 parasse ali, e todo o mais não fosse necessário, depois daquela monstruosidade. A partir dali, todos os meses restantes de 2011 se tornaram um mero acúmulo de tentativas de minimizar aquele golpe de violência gratuita e, quem sabe, acreditar que, apesar de todo o nojo, a existência ainda pode valer mais do que essas penas e dobrar negros pessimismos, em vez de nos obrigarmos a concordar com Shakespeare, quando diz que a vida é a “história contada por um idiota, cheia de som e fúria, e nada significa”, e a viver conformados – já que estatisticamente ela é isso mesmo.


Que em 2012 você possa contrariar todas as estatísticas mais pessimistas do mundo, escapar de algumas das que ainda serão feitas e que possa provar a si mesmo que há motivos para ser feliz sem sentir vergonha disso. Que há gente sofrendo no mundo, todos sabemos. Mas há um coração que pulsa no seu peito, e você é o responsável primário pela alegria dele.

19.12.11

Adeus ao inimigo do senso comum



O fim de semana de perdas históricas - Cesária Évora, Joãosinho Trinta, Sérgio Britto, Vaclav Havel e o time do Santos - não foi suficiente para me demover de escrever sobre outra, ocorrida na quinta-feira, quando morreu o escritor e jornalista Christopher Hitchens, 62.

Autor de "Deus Não É Grande" (Ediouro, 2007), o inglês foi uma das mentes mais inquietas do nosso tempo. Contrário às religiões - por acreditar que elas são instrumentos de repressão do livre pensamento -, Hitchens foi um pensador apaixonado pela ideia da democracia e pelos valores do Ocidente, mas acima de tudo um determinado a enfrentar o senso comum. Sobre esses pilares, estruturou toda a sua defesa da incursão americana no Iraque - talvez sua segunda posição mais polêmica, depois do seu ateísmo militante.

Pessoalmente, discordo de Hitchens tanto na sua ótica sobre religião quanto ao apoio àquela guerra: nem a administração Bush merecia o suporte de tamanha inteligência numa invasão tão suja, nem a religião é só convite às trevas. Ao contrário, parte significativa do nosso conceito de civilização atual (democracia e justiça social inclusas) surge de culturas monoteístas.

O que deve ser elogiado em Hitchens é seu método. A capacidade incrível de equacionar conhecimentos históricos e emitir opiniões fundamentadas com um estilo literário assombroso fizeram-no um intelectual diverso, para consumo universal, capaz de ver mal em figuras indiscutíveis que vão desde madre Teresa de Calcutá ao ex-premiê britânico Winston Churchill, cultuado na Inglaterra e nos EUA.

Não que seja preciso aceitar seus pontos de vista (ele certamente odiaria ser visto como uma pessoa acima de qualquer suspeita ou um "mentor para a civilização"), mas a veemência do discurso hitchensiano nos fazia pensar, porque estava longe da irrelevância. Na questão religiosa, por exemplo, além de dar argumentos fulminantes aos ateus (que normalmente baseiam suas posições em experiências pessoais), ele obrigou os pensadores cristãos a virem ao debate muito mais preparados, sacudindo-lhes o mofo com sua coragem e retórica afiadíssima. Ambos os lados ganharam.

Com a partida de Hitchens, a lacuna que fica nos obriga a sermos tão inteligentes e assertivos quanto ele na defesa das liberdades que temos, das que queremos e das opiniões que, mesmo explosivas, se fazem necessárias.

15.12.11

O mais novo poeta antigo do Brasil

Um dos personagens mais interessantes criados por Woody Allen está no filme “Vicky Christina Barcelona”. Trata-se do pai do artista vivido por Javier Bardem: homem que, segundo seu filho, é capaz de “escrever os versos de amor mais belos da Terra”, mas que jamais os publicaria em vida, por acreditar que “o mundo é incapaz de compreendê-los”.


Parece que tal poeta existe, é pernambucano e padre. Chama-se Daniel Lima, tem 95 anos e foi agraciado há uma semana com o prêmio do Concurso Literário da Biblioteca Nacional.

Levou o valor de R$ 12,5 mil quase por acidente, uma vez que a obra foi inscrita no concurso por amigos – Daniel não intencionava publicações em vida e até mesmo foi contra, quando soube do que lhe foi feito à revelia. Acabou por superar mestres como Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant’Anna.

Perfis publicados nos jornais dão conta de uma timidez doentia como a principal razão para que Daniel tenha atravessado quase um século sem permitir que nós pudéssemos conhecê-lo.

Ao brilhante repórter Fabio Victor, da “Folha de S.Paulo”, Daniel resumiu sua condição atual de poeta hospitalizado, impedido de receber em mãos o prêmio que lhe deram: “Adoeci de Daniel. O mundo é muito importante, eu fico meio desorientado. Para me enquadrar nele eu tenho de sofrer e adoeço”. Missão quase tão improvável para nossos dias quanto ler poesia.

No país campeão mundial em analfabetismo funcional, poemas são ensinados como esfinges, enigmas para respostas longínquas, quando deveriam ser estopins para a detonação das verdades que guardamos em nós e de nós – e que eles sabem compreender e revelar.

Leia, por exemplo, o trecho de “Casa Revisitada”, do novo poeta antigo de Pernambuco, e veja se é possível não se identificar com ele.

“Na frente, um portão velho que rangia
como se dissesse coisas tristes a quem por ela passava.
E dentro da casa onde nasci
um corredor sem fim corria não sei para onde
E nem sei por que corria
o corredor sem fim da casa onde nasci
nem sei para onde.”

“Poemas”, de Daniel Lima, foi editado pela Cepe (R$ 45). Arrisque-se.

12.12.11

Som que marca a alma a ferro


[Destak, 12/12]
Há um novo documentário de Eduardo Coutinho nos cinemas, o que significa que temos mais uma razão para aplaudi-lo. Trata-se de um cineasta que compreende como poucos as maneiras de transformar o real em arte.

Desta vez, Coutinho mergulha fundo na relação entre memória e música. Já em "Edifício Master", ao menos três dos moradores de um prédio superpovoado em Copacabana cantavam temas inteiros. Em "As Canções", que acaba de estrear, cada entrevistado conta sua mais preciosa história, sempre citando a música brasileira que a pontuou. A maior parte dos relatos é de romances, bem ou malsucedidos, com algumas dramáticas lembranças de perda de pais aqui e ali. Quando se precisa de um fio-condutor que costure os depoimentos, é possível se convencer de que um deles é o machismo.

Na tela, um marinheiro que admite ter culpas em relação à mulher e que se compadece com o volume de trabalho dela no lar, mas que não lava um prato para ajudar. Depois temos Queimado, o homem que é visto pela namorada num baile com outra mulher. A namorada sai de lá com outro homem e, dias depois, Queimado consegue inverter a situação de forma tão magistral quanto absurda: a namorada é quem estava errada. Há ainda mais algumas mulheres que têm de lidar com a existência das amantes, de forma conformada ou até despreocupada.

A esse aparente atraso no que compete ao papel feminino, misturam-se letras de amores rasgados, homens e mulheres vítimas de feridas incuráveis, o que nos faz pensar que somos habituados ao conceito de que o mais bem-sucedido dos amores passa por uma opção de sofrimento. Escolhemos algo que nos é contrário, que até nos fere na dignidade (nas mulheres do filme, isso quase sempre se refere a submeter-se a um machismo), porque nos tira de um individualismo que protege. Dói, mas aceita-se pelo que se considera ser o "bem maior".

E vê-se que o amor inesquecível faz brotar lágrimas, como lembrança desse sofrimento autoimposto, seja porque foi árdua a luta para conquistá-lo até torná-lo bem-sucedido, seja porque dói admitir que a realidade era mais forte que o desejo. Encerra Coutinho glorificando a música, essa forma de arte maior que todas as outras, que marca memória e alma a ferro, mas também alivia quando entendemos que viver sem dores é já ter morrido.

4.12.11

Corinthians penta: um roteiro do futebol pós-socrático

Que o fim do Campeonato Brasileiro não poderia ser mais excitante do que ontem, todos já sabíamos. A ideia de programar os clássicos de arqui-rivais na última rodada foi uma das mais brilhantes saídas para prevenir a possível falta de profissionalismo ou atitudes antiéticas de clubes e jogadores. O que jamais poderíamos imaginar é que os deuses do futebol tinham se tornado tão bons cineastas.

Um hipotético filme sobre o penta do Vasco já seria de um roteiro magistral. Pense: a superação de um clube e uma torcida que encerraram uma década terrível com dois títulos nacionais no mesmo ano. A sagração de Juninho Pernambucano, a redenção de Felipe, um tributo à luta de Ricardo Gomes pela vida, o conto de um humilde auxiliar técnico, Cristóvão Borges, que virou o guia certo na hora certa.

Um belo e merecido roteiro, que não será filmado. Desta vez, a sinopse campeã é a de um time que começou o ano eliminado na Pré-Libertadores pelo folclórico Tolima. Manteve-se o técnico, contratou-se Adriano (para fazer o gol mais caro da temporada) e, como tudo deve convergir, o gol que a torcida comemorou foi marcado por Renato, do Flamengo, um jogador que foi revelado no Parque São Jorge  – e que quase foi detestado por lá. E tudo para erguer a taça do penta como tributo a um homem que foi herói e anti-herói corintiano a um só tempo. Sócrates não foi apenas um craque extraclasse. Talvez por carregar o nome de pensador, o irmão de Raí se obrigou a ser um homem de raciocínio, opinião e personalidade.

Não bastasse a criatividade de usar o toque de calcanhar para compensar sua lentidão – que se devia tanto à sua altura 1,91 m quanto a sua aversão à vida de treinos e restrições alcoólicas –, Sócrates viu no futebol uma forma de conscientizar os brasileiros sobre a necessidade de mais democracia. Além disso, viveu como quis, triunfou o quanto pôde, deixou sua marca no seio da torcida. Esporte para ele não foi saúde o tempo todo: fumava, bebia, pouco treinava. Nada muito diferente da vida de outros jogadores da história recente corintiana, mas a diferença é que com Sócrates nunca houve sonsice. Magrão nunca precisou parecer alguém que ele nunca foi. Fará falta na festa alvinegra e na Copa do Mundo de 2014: poderia lembrar aos craques que contestar também é parte do jogo.