28.7.11

Santos 4x5 Fla - Para lembrar que bola é coisa séria 

Há tempos que eu não escrevo sobre futebol aqui – o artigo em que comparei a Copa de 2014 ao cavalo de Troia, convenhamos, não vale. A suspeita de que o Santos 4x5 Flamengo da última quarta pode ter sido o jogo mais emocionante que já vi me fez abandonar Amy Winehouse, a Noruega e o casamento gay. Futebol, como se sabe, é assunto extremamente sério. Sou da opinião de que o futebol concedeu ao brasileiro a permissão de sonhar que o país tinha jeito.

O Santos 4x5 Flamengo da última quarta é parente de um futebol que, por ter 32 anos, não vi: aquele dos ataques generosos e das defesas quixotescas dos anos 50 e 60, de Pelé, Garrincha, Telê. Tem um pé na pelada e outro na epopeia. Exultante, meu pai me ligou dizendo que o Flamengo “tinha atravessado o mar Vermelho!”. Não sei dizer exatamente quem seria Moisés e os israelitas nem quem seriam os egípcios e o mar Vermelho, mas entendo perfeitamente o que ele quis dizer.

Raramente se vê um time reverter uma desvantagem de 3 a 0. Em 2000, o Vasco conseguiu isso numa final de Mercosul sobre o Palmeiras, na noite em que, com três gols, um Romário possuído suplantou até mesmo a expulsão de seu colega Júnior Baiano e levou a taça a São Januário. Não tenho muitos outros exemplos na ponta da língua.

A partida foi tão generosa em dramaticidade que, além da profusão de gols, teve pênalti perdido (Elano) e gol inacreditavelmente desperdiçado (Deivid, trocando passes consigo mesmo). Aliás, teve até sequestro de pai.

E um conflito de gerações. De um lado, Neymar, que decreta a volta da escravidão aos zagueiros, submetendo-os às suas vontades improvisadas ao cúmulo de humilhar um beque tão cavalheiro quanto Ronaldo Angelim – que merece, mais do que o prêmio Fair Play da Fifa, uma indicação ao Nobel da Paz.

Do outro, Ronaldinho. Se não é mais o tirano dos campos que um dia foi (como Neymar hoje é), ainda sabe fazer uma barreira levitar, a fim de dar à bola o mais curto atalho para o gol. Aos 31 anos, o gaúcho ainda reserva algumas façanhas por realizar. Desde ontem, ele também é o cara que ensinou à nova geração de craques e torcedores a reação impossível, com arte nos pés e raça nas vontades.

Não é sempre que se pode aprender uma lição dessas. Que Ganso e Neymar guardem isso para 2014.

22.7.11

 A BELEZA QUE SÓ SE ENTENDE NA VOZ
 [Destak, 22 de julho]

A verdade é que a parte mais bonita do corpo da mulher é a voz. Não sei se dou atenção demasiada às circunstâncias musicais da vida, mas me parece extremamente difícil amar alguém cuja voz parece fora do tom em que se afina o coração. 

Não é questão de ser mais ou menos aguda, ou mais ou menos grave. Tanto o mais estridente flautim quanto o mais solene violoncelo têm sua música particular e podem ser extremamente agradáveis ou provocantes; depende de como se maneja, e a voz funciona igualmente. 

E não estou falando de cantoras. Falo daquela voz que ao telefone hipnotiza, que sabe nos acordar quando os olhos ainda estão fechados e que consegue derreter as geleiras da alma mesmo quando discorda de nós ou aponta nossos equívocos com severidade. 

Há uma extensão clara disso no nosso mundo cada vez mais verbal, que às vezes não é percebida: mesmo numa mensagem de texto por celular, ou numa conversa em chat, há uma voz que se ouve nos olhos de quem lê. 

Há quem diga que escrever bem é sexy, e nesse caso os critérios variam. Não vou dizer quais são os meus, mas tenho certeza de que isso tem a ver com a possibilidade de imaginar a pessoa dizendo isso, a expressão alheia que nos vem à mente quando a lemos. 

Ainda assim, escrever é um ato pensado. Há sempre um tempo que permite hesitar, reconsiderar ou mesmo elaborar a melhor resposta. A voz padece por ser um veículo da espontaneidade. É possível perguntar ao celular se "está tudo bem" apenas por sentir que a voz do outro lado está estranha e nos preocupa. A quilômetros de distância, ela ainda é capaz de denunciar o mais triste dos semblantes. 

E sempre há o tempero dos sotaques, que nada mais são do que essa melodia da fala que aprendemos quando queremos fazer parte de algum grupo de falantes. No Rio, ela se assemelha a uma ladeira que termina numa freada harmoniosa; em São Paulo, vem embalada em consoantes secas e uma nasalidade que cai de paraquedas; no Sul, ela repete uma frequência que aponta várias vezes para cima; e, no Nordeste, quem fala não tem nada a esconder.

19.7.11

Cold, poema da escocesa Carol-Ann Duffy, foi publicado sem tradução na capa da última edição do Prosa & Verso de O Globo, e acabou me provocando. O resultado é este, e o original em inglês vai mais abaixo.

Frio

Era tão fria a bola que nas mãos chorava
neve, e que ao rolar crescia pela neve até
que nela eu me sentasse, olhando para casa,
onde, num quarto frio de janelas cegas
de gelo, meus suspiros no ar se desnudavam.
Frio também no abraço que deu forma ao Homem
de Neve, e em meus dedões que ardiam frios dentro
das botas invernais; mamãe que me gritava
"Sai do frio!", com frias mãos de descascar
batatas que esperaram enquanto me beijava
cada bochecha fria e o meu frio nariz.
Mas nada frio como a noite fevereira
em que, nem jovem nem idosa, ela jazia,
e a testa aos lábios deu-me a tradução de "fria" .

OBS: O poema obrigou-me a empregar doze sílabas em cada verso (medida igualmente usada pela poeta escocesa), e rima no par final de versos. A gente abre mão de muita coisa quando traduz sem "liberdade". É mais uma revelação incompleta de intenções originais, além das escolhas que nos são mais caras. Espero que gostem.

Aqui, o original, com os direitos reservados.


Cold
It felt so cold, the snowball which wept in my hands,
and when I rolled it along in the snow, it grew
till I could sit on it, looking back at the house,
where it was cold when I woke in my room, the windows
blind with ice, my breath undressed itself on the air.
Cold, too, embracing the torso of snow which I lifted up
in my arms to build a snowman, my toes, burning, cold
in my winter boots; my mother’s voice calling me in
from the cold. And her hands were cold from peeling
then dipping potatoes into a bowl, stopping to cup
her daughter’s face, a kiss for both cold cheeks, my cold nose.
But nothing so cold as the February night I opened the door
in the Chapel of Rest where my mother lay, neither young, nor old,
where my lips, returning her kiss to her brow, knew the meaning of cold.


14.7.11

A lenda do cavalo da Troia tropical


Houve certa vez uma Troia tropical. Um país em desenvolvimento, historicamente marginal, vitimado por uma baixa estima incongruente com sua grandeza territorial e que tinha por principal orgulho... a sua cavalaria. Um dia, em seu litoral, foi deixado um gigantesco cavalo de madeira, que maravilhou a população. 


No casco da estátua, lia-se: “Garantia até julho de 2014, sob condições específicas”.

Ciente da clamorosa aprovação do povo, o rei bancou o presente, argumentando que “o cavalo é a paixão nacional”, que Troia merecia ter aquele orgulho e que o monumento geraria empregos e melhoraria muito o país em termos de estrutura. Até os aeroportos seriam ampliados para suportar o transporte do enorme animal. Estábulos em todo o país seriam reformados e novas estrebarias erguidas, e haveria investimento estrangeiro em inúmeras áreas. Troia estaria no centro das atenções do mundo.

Algumas sacerdotisas profetizaram, porém, que o cavalo talvez fosse um “presente de grego”. Já havia acontecido na África, onde a passagem de um equino semelhante em 2010 deixou vários elefantes brancos de vergonha, num rastro de gastos excessivos.

Em Troia, a obra de um estábulo histórico perto de um rio foi orçada em R$ 1 bilhão. Já na primeira cidade que receberia o cavalo, erguer-se-ia às pressas uma estrebaria privada que era sonho do rei. Foi presenteada com isenção de impostos, o que gerou chiadeira da oposição.

O rei não deu bola. “Deixa essas Cassandras, elas sempre falam”. Aceitou as condições dos exigentes tratadores do bicho e, anos depois, deixou a rainha para tocar as obras, que já andavam atrasadas como nunca antes. Fora outros problemas: cortes no Orçamento, concessões de ministérios aqui e ali para partidos que garantiam a governabilidade no Parlamento. Também a inflação batia as portas e o custo de vida aumentava. Morar em Troia tinha ficado bem mais caro, em parte devido ao que alguns analistas batizaram de “custo hípico”.

E nos campos de Troia, conviviam tanto a esperança de que a Cavalaria fizesse bom papel na festa quanto o temor de que, de dentro do cavalo, saísse um furioso Exército de contas. Que jamais se pagariam sem sangria pública.

1.7.11

Você sabe quanto custa R$ 1 bilhão?
[publicada no Destak de 30.jun]


O brasileiro médio dificilmente vai ter contato com R$ 1 bilhão. Nem mesmo os mais afortunados acertadores de loterias sabem dimensionar. Bilhões são para bancos, empreiteiras e valores relacionados a balanços e orçamentos dos governos. Dá para dizer que é raro haver R$ 1 bilhão sem governo no meio. Vou além: o bilhão de reais é quase uma unidade de grandeza exclusiva para dinheiro de gente que se relaciona com governos.

Um Maracanã reformado custa R$ 1 bilhão. Pronto, já temos um sinônimo para a grandeza.

Lembram-se de quando uma grande passeata no Centro do Rio gritou pelos royalties do petróleo? A conta que se trombeteava em 2010 era a de que, sem os dividendos do ouro negro, o Estado perderia R$ 7,2 bilhões anualmente. Segundo o governador Sérgio Cabral, essa seca faria o Rio literalmente "quebrar".

Sem os royalties, em quatro anos - tempo que dura um mandato estadual - o Rio teria perdido R$ 28,8 bilhões. E assim "quebraria".

Pois bem. Recentemente, outra conta que "quebraria o Estado" foi feita, a respeito do aumento dos bombeiros. Caso fosse concedido o piso de R$ 2 mil que a categoria inicialmente pleiteava - e que seria obrigatoriamente estendido aos policiais -, o impacto nas contas do Estado seria de R$ 4,7 bilhões por ano.

Em quatro anos - sempre pensando em um mandato - R$ 18,8 bilhões seriam gastos com as forças. Somados aos R$ 28,8 bilhões dos royalties "perdidos", uma gestão que "quebraria o Estado" teria perdido R$ 47,6 bilhões.

Por que uso quatro anos? Porque foi de 2007 a 2010 - primeira gestão de Cabral - que o Rio abriu mão de R$ 50 bilhões em impostos para beneficiar empresas: desde setores estratégicos, como a fábrica da Michelin, até uma famosa rede de cabeleireiros e duas termas. Esses R$ 50 bilhões são mais da metade do que Cabral arrecadou em impostos no período: R$ 97 bilhões, segundo a Folha de S.Paulo.

Renúncia fiscal é ferramenta para o progresso, quando bem-usada. Mas, se não for aplicada com rigor e sentido estratégico, pode quebrar um Estado. E aí surgem 1 bilhão de desculpas.